domingo, 27 de setembro de 2020

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Deixemos um taful que blasfemou de Santa Maria e logo morreu. Há histórias melhores. Jogava um catalão em frente da igreja, perdeu e atirou uma seta para o céu…»

 

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Frei Paio de Coimbra

«(…) Onde sorrimos com mais vontade é num sermão de S. Tomás de Cantuária, quando frei Paio nos fala dum epiléptico que deitou onze rãs pela boca fora. Que significavam elas? Os poetas a contar fantasias, com voz de inchada modulação, e os jograis loquazes, habituados a viver em casa dos prelados. Boa ironia, sim senhor! O clero também leva a sua conta, embora pequena, por se tratar de panegíricos. Eles abrem coroa só por amor das prebendas e das riquezas. E dizem: vamos abrir coroa aos nossos parentes, a fim de eles herdarem o património e os rebanhos do Crucificado, isto é, as paróquias! Ficaremos com as dízimas, oblações e primícias. Como este dominicano e Santo António, centenas doutros pregadores criticavam as fraquezas e crimes dos homens, a ferro em brasa ou com o chicote da sátira. Perdeu-se quase tudo, mas sabemos que eles gostavam de contar histórias e exemplos, ora engraçados ora a dar a impressão de que o mundo estava perdido. A preguiça humana resistia a tudo, mas não de todo. E foi esta enorme força verbal que fez rir e chorar a Idade Média, em torno dos púlpitos, muitas vezes ao ar livre. Tais sermões não equivaliam a cantigas de escárnio e maldizer. Mas participavam, às vezes, da sua graça desbocada.

A Sátira nas Cantigas de Santa Maria

Conforme escreve José Guerrero Lovillo, os iluminadores e miniaturistas das Cantigas de Santa Maria, al enfrentarse con las representaciones demoníacas, lo hacen con cierto tono burlón, presagio del carácter cómico que iba a tomar en el siglo, XIV. E acrescenta, pouco depois: en el siglo XIII, el artista se atreve a entablar coloquios con el espíritu maligno, como aquel maestro pintor de la Cantiga LXXIV, con quien el diablo hubo de reñir y le menaço muy mal por que o pintava feo. Em paga, pintava ele muito formosa a Virgem Maria, e era este contraste que punha o diabo fora de si. Se ao menos o pintasse regularmente! Não. Punha-o mais feio do que outra ren. Verdade seja que nós sorrimos, acima de tudo, porque não acreditamos nesta questão entre o diabo e o pintor. Os leitores de então e os que escutavam o canto destes milagres também sorririam, mas por verem o diabo mais negro do que o pez e danado contra quem o assim representava. Era vaidoso, o maroto.

Muitas das Cantigas de Santa Maria assumem atitude polémica contra hereges, pecadores e judeus incréus. E revelam, no tom geral e no refrém, um sorriso vitorioso pela derrota dos maus, como se o autor exclamasse: ora vejam e tenham cuidado. Meteram-se com a Gloriosa, caiu-lhes o castigo em cima e foi bem feito. Há, nelas, uma sátira implícita da maldade e da estupidez dos inimigos da Virgem Maria e um sorriso largo de como pagaram caro o atrevimento. O imperador Juliano, falso e felon, desrespeitou S. Basílio e saiu-lhe da boca este insulto: na volta, hei-de obrigar-te a comer palha! Pois bem, montado num cavalo branco, veio depois S. Mercúrio, por ordem de Santa Maria, e atravessou-lhe a pança duma lançada. Assim morreu Juliano, o chufador. Até os vocábulos são, por vezes, escarninhos. Certa mulher da Gasconha ria-se da criada e dizia-lhe que dali não iria em peregrinação a Rocamador, a não ser que a Virgem Maria a levasse na cadeira em que ela, a mulher da Gasconha, estava sentada. Meu dito, meu feito. Voa a cadeira e vai depô-la diante do altar da mui Graciosa! Arrependida, exclamou: Astrosa fui e o mesmo acontecerá a quem fizer como eu.

Já se vê que, neste caso, aumenta o sorriso e a troça com vermos a mulherzinha assustada a ir pelos ares, um pouco à maneira das bruxas montadas num pau de vassoura. Deixemos um taful que blasfemou de Santa Maria e logo morreu. Há histórias melhores. Jogava um catalão em frente da igreja, perdeu e atirou uma seta para o céu, contra Deus e Nossa Senhora. A seta voltou e caiu precisamente no tabuleiro de jogo, tinta de sangue. Que fez o jogador? Entrou para religioso, em ordem forte e Santa Maria lhe perdoou. Talvez o auditório pensasse, ao findar a cantiga: escapou de boa! O que nos espanta é o enorme poder de aceitação, implícito nestas cantigas. Mas como eram a favor de Nossa Senhora, os ouvintes escutavam-nas com ternura e punham-se a favor da Gloriosa e contra os blasfemos, indignando-se contra os pecadores e rindo-se, por vezes, dos castigos. Ou melhor, com os castigos». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,