quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Prisioneira da Inquisição. Theresa Breslin. «Quero o melhor para minha esposa e meu filho. A voz de pai falhara nesta última palavra, e Garci havia estendido sua mão a ele, mas a havia recolhido antes de tocá-lo»

Cortesia de wikipedia e jdact

A Chegada da Inquisição (maldita) 1490-1491

Zarita

«(…) Se, por um lado, meu pai, o magistrado, era respeitado na cidade de Las Conchas, por outro, minha mãe fora amada. As pessoas foram para as sacadas das casas para ver a carruagem fúnebre, puxada por quatro cavalos negros emplumados, seguir o seu imponente caminho pelas ruas, e jogaram pétalas de flores quando o cortejo passou em baixo delas. Além de ser conhecida por seus actos de caridade, a mãe ajudara a fundar um hospital para cuidar dos destituídos; ali, sua irmã mais nova, minha tia Beatriz, fundara uma ordem de enfermeiras religiosas. Completamente veladas, com os capelos de seus hábitos puxados para baixo, as freiras se posicionaram diante do prédio a fim de assistir ao cortejo fúnebre, e muitos dos pobres se enfileiraram em ambos os lados do caminho de terra que levava ao cemitério na colina acima da cidade. Os amigos de negócio do meu pai compareceram, assim como uma pequena parte da nobreza local. Embora fosse rico, meu pai não tinha sangue nobre, mas era respeitado pelos lordes e pelos dons, que sabiam que ele fazia cumprir as leis que os mantinham em segurança. O túmulo da família tinha sido aberto, e o padre Andrés, paramentado de preto, esperava junto ao portão do cemitério. Estava acompanhado de uma dúzia de acólitos que usavam sobrepelizes brancas sobre sotainas pretas e seguravam compridas velas grossas de cera maciça de abelha. Eu ouvira meu pai ordenar ao administrador da nossa fazenda, Garci Díaz, que mandasse fazer aquelas velas especialmente para a ocasião. Não poupe despesas, ordenara. Quero o melhor para minha esposa e meu filho. A voz de pai falhara nesta última palavra, e Garci havia estendido sua mão a ele, mas a havia recolhido antes de tocá-lo.

Agora o condutor da carruagem fúnebre puxou as rédeas para parar os cavalos, e o padre veio ao nosso encontro. E, de repente, tudo se tornou real para mim. Eu tinha passado os últimos dias chorando e soluçando através do que parecia um terrível pesadelo, mas, ao ver os homens erguerem o caixão de madeira que continha os corpos de mãe e do meu irmão recém-nascido, fui arrebatada pela emoção em toda a sua força. O sol ofuscante penetrou a renda negra de minha mantilha e crestou minha visão. Era tudo verdade; não se tratava de um sonho do qual eu acordaria. Minha mãe seria colocada naquele lugar frio e escuro, e não voltaria para casa, para nós. Os cavalos mudaram de posição e os seus arreios e tirantes tiniram. O padre Andrés começou a entoar as preces pelos mortos: das profundezas, eu clamo a ti, Ó Senhor. Senhor, escuta a minha voz. Ele liderou a procissão. Os homens com a sua carga o seguiram, depois a família e os amigos. Eu mal conseguia mexer-me. Minha velha ama de leite, Ardelia, colocou o braço em volta de minha cintura para me apoiar. Ela chorava copiosamente, pois também fora ama de leite de minha mãe e a amava, assim como todos que a conheceram. Seus estremecidos soluços reverberavam através de mim. Lágrimas escorreram novamente de meus olhos.

Havia anos, quando foi nomeado magistrado, meu pai mandou erigir a nossa cripta funerária com colunas, estátuas e os elegantes adornos que achou de acordo com a sua nova posição. Naquele momento ele parecia ter sido esculpido no mesmo mármore frio, e meu coração gelou quando vi o seu rosto. Ele me dirigira menos do que uma dúzia de palavras desde a morte de minha mãe. Ardelia tentara explicar: não se aflija por causa dos modos de seu pai, dissera-me ela. É compreensível que ele haja dessa maneira. Você se parece tanto com sua mãe que olhá-la deve partir seu coração. Nos meus pensamentos mais sombrios eu me afligia por isso. Se eu fosse homem, pai teria ficado tão agoniado? Prantearia seu há muito desejado filho homem mais do que o fez por minha mãe? Ele não me demonstrara qualquer sinal de compaixão que me ajudasse a suportar minha perda. Naquela primeira noite após  mãe ter falecido, fui-me ajoelhar junto à sua cadeira, como costumava fazer à noite, quando ele afagava o meu cabelo e conversava comigo. Eu pretendia compartilhar meus pensamentos com ele; talvez falássemos de mãe e consolássemos um ao outro». In Theresa Breslin, Prisioneira da Inquisição, 2010, Galera Record, 2014-2015, ISBN 978-850-110-256-0.

Cortesia de GRecord/JDACT

JDACT, Theresa Breslin, Literatura, Espanha,