sábado, 12 de setembro de 2020

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa»

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Sentia-me tão tocado com tal mercê, com a generosidade de meu mestre, que a minha garganta parecia queimar como que em ânsias desesperadas. As lágrimas embaciavam-me a sala. Tive de engolir por diversas vezes antes de poder sussurrar: mas nunca havemos de nos separar. Hei-de sempre... Mais tarde ou mais cedo, os mais novos têm de se separar dos mais velhos, disse meu tio. Hás-de seguir o teu caminho e hás-de depois voltar. Mas não há-de haver nenhum demónio capaz de me travar se estiveres em perigo!, retirou a mão da minha cabeça e acariciou-me no rosto. Agora vá, temos de trabalhar. Mas não há nada que eu possa...? Estendeu a mão e apontou para o meu manuscrito: ai do mestre de Cabala que responda a todas as perguntas do seu aprendiz! Toca a trabalhar! Momentos depois, quando avivava as patas de um cãozito na minha iluminura com pequenos toques de tinta negra, um berro como vidro a partir-se cortou o ar. Corre!, - gritou meu mestre. Subi a escadas de um pulo. A cozinha estava vazia. De fora, vozes alteradas ressoavam contra os muros. Saltei do meu quarto para a loja, precipitei-me para a Rua da Sinagoga. Enquanto guardava o meu kipá, avistei tia Ester ajoelhada junto ao nosso amigo Diego, que gemia. De um corte no seu queixo barbudo o sangue corria para as mãos de minha tia.


O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas por enquanto essa geografia de morte era ainda um segredo para nós. Pela sua fronte corriam torrentes de suor e as faces estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de tosse, procurava recuperar o fólego. Andava a passear por aqui..., só um passeio, disse ele em português. Parei perto do rio, no Chafariz dEl-Rei a lavar as mãos. Tia Ester desapertou-lhe a gola do gibão enodoado e limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa. Reparei no traço escuro de uma cicatriz antiga que tinha no peito, por baixo da clavícula, que parecia ter sido escavada por algum bicho. Em torno a nós, começaram a juntar-se vizinhos, a bisbilhotar entre si. Dois rapazes..., continuou Diego. Começaram aos berros que eu estava a envenenar o poço com essência de peste. Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras. Apanhem o rabino de rabicho! Apanhem o rabino... Quem me salvou foi um homem moreno com um gorro azul. Era alto, forte... No seu desespero, as últimas palavras procuravam o socorro do hebraico. Fala português, murmurei-lhe, enquanto o deitávamos no empedrado da rua. O turbante de Diego tombou e reparei então pela primeira vez, por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que começava a rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a sua cabeça. Tinha-lhe caído um papel dobrado. Pensando que podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de orações que o poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e enfiei-o na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao pescoço e me servia como uma espécie de bornal, judas encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o sacudir para que fosse chamar o doutor Montesinhos. Meu tio reuniu-se a nós e, depois de uma breve oração, disse: vou lá dentro ver se posso arranjar algum remédio.

Ainda tentei manter fechado o lanho, com os dedos apertados em torno da ligadura improvisada de minha tia, mas o tecido depressa ficou tinto de sangue. Tia Ester foi a correr buscar água limpa, enquanto eu rasgava tiras da minha camisa para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid. Traziam extractos de consolda, bagas de loureiro, gerânio, goma e argila, goma arábica e água sulfurosa. Mas apesar de todas estas substâncias adstringentes, o sangue não coagulava. É esta maldita barba!, resmungou meu tio - Não consigo chegar à ferida. O doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba, disse ele para o ferido. Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um empurrão: não o permitirei!, gritou em hebraico. Tenho de ter barba. É proibido... Há levitas sem barba, observei, mas Diego limitou-se a gemer. Dirigindo-me a meu tio, sussurrei: um ataque em pleno dia. É mau sinal. Mais umas semanas de seca e... Como podes ter a certeza que não foi planeado?, disse meu tio num tom irado. Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra projectando-se sobre nós suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo uma carruagem branca e dourada fitavam-nos do alto». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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