«(…) Se no observarmos bem, aliás, podemos principiar a entrever já o perfil dos nossos ossos, que as vírgulas das olheiras e o acento circunflexo da boca disfarçam de sorrisos melancólicos de que pendem restos murchos de ironia idênticos ao braço inerte de um ferido. Talvez o tipo da mesa ao lado, que o décimo Carvalho Ribeiro Ferreira inclina dezassete graus para bombordo na rigidez de andor de uma torre de Pisa de casaco de veludo à beira de queda catastrófica, seja Amedeo Modigliani a procurar no fundo do cálice um rosto assassinado de mulher, talvez Fernando Pessoa habite aquele senhor de óculos ao pé do espelho, em cuja aguardente de pera pulsa o volante comovido da Ode Marítima, talvez o meu irmão Scott Fitzgerald, que o Blondin assemelhava a um três quartos ponta irlandês, se sente a qualquer momento à nossa mesa e nos explique a desesperada ternura da noite e a impossibilidade de amar, porque, sabe como é, o vodka confunde os tempos e abole as distâncias, você chama-se na realidade Ava Gardner e consome oito toureiros e seis caixas de Logans por semana, e, quanto a mim, o meu verdadeiro nome é Malcom Lowry, sou escuro como o túmulo onde jaz o meu amigo, escrevo romances imortais, recomendo Le gusta este jardín que es suyo? evite que sus hijos lo destruían, e o meu cadáver será lançado na última página, como o de um cão, para o fundo de um barranco.
Viemos todos hoje ocupar a inocente Lapa cor-de-rosa
imitada de Carlos Botelho da maré-baixa das nossas bebedeiras silenciosas, à
superfície das quais cintila, de quando em quando e by appointment of Her Majesty the Queen, o reflexo do génio,
e sobre as nossas cabeças ungidas tombam as línguas de fogo de Johnny Espírito Santo Walker: Utrillo, que amarrotava postais ilustrados enquanto
pintava, Soutine, o dos meninos do coro e das casas torturadas, Gomes Leal e a
sua inocente e tonitruante miséria de menino velho, e nós os dois observando,
maravilhados, esta procissão de palhaços sublimes que uma música de circo
acompanha. Pode parecer-lhe esquisito mas sempre vivi rodeado de fantasmas numa
casa antiga que era como que o espectro de si mesma, desde o portão flanqueado por ananases de
pedra à mala dos ossos de Anatomia, que aguardava, arrecadada, a minha vez de a
estudar, num perfume doce de incenso e de gangrena. Gatos vadios escondiam-se
nos ramos da figueira do quintal como frutos furtivos, cujos olhos pingavam o
leite verde de uma desconfiança rápida, nos vidros da salamandra crescia a
claridade opala dos versos de Cesário, e na sala o retrato de Antero, de uma
dolorosa beleza que o génio calcinava, opunha aos bigodes modestos dos avós o
oceano em desordem da sua barba loira, onde naufragavam destroços quebrados de
tercetos. O meu pai, magro e anguloso como um mórmon, viajava à deriva na
poltrona, impulsionado pela chaminé de navio do cachimbo, a sombra inchava
volumes geométricos nos prédios vizinhos, desenhada por um Soulages triste, e
eu masturbava-me no quarto sob a fotografia colorida da equipa do Benfica, na
esperança de vir a ser um dia o Águas da literatura, que de cócoras, ao centro,
desafiava o universo com o orgulho de mármore de um discóbulo triunfal.
No
cu de Judas, oculto por uma farda de camuflado que me fornecia a aparência
equívoca de um camaleão desiludido, adiava a minha partida para Estocolmo a
bordo de um barco de papel impresso, para viajar de helicóptero, de balões de
plasma entre os joelhos, a recolher da mata os feridos das emboscadas, que
sobreviventes estupefactos erguiam à maneira dos corpos brandidos dos
náufragos. O furriel enfermeiro, a quem a vista do sangue enjoava, ficava à
porta da sala de operações improvisada, dobrado como um canivete, a
vomitar num banco o feijão do almoço, e eu, tenso de raiva, imaginava a
satisfação da família se lhe fosse dado observar, em conjunto e de chapéu de
aba larga como na Lição de Anatomia de
Rembrandt, o médico competente e responsável que desejavam que eu fosse, consertando
a linha e agulhas os heróicos defensores do Império, que passeavam nas picadas
a incompreensão do seu espanto: c’est
un peu dans chacun de ces hommes Mozart assassiné, dizia eu furioso dentro de mim, desbridando
tibiais, rodando garrotes, regulando a botija de oxigênio, preparando os
amputados para seguirem para o Luso, assim que amanhecesse, na pequena avioneta
da FAP, enquanto os maqueiros, no compartimento ao lado, procuravam as veias
dos dadores, e o tenente seguia inquieto os meus gestos numa ansiedade que se
adensava. Nunca as palavras me pareceram tão supérfluas como nesse tempo de
cinza, desprovidas do sentido que me habituara a dar-lhes, privadas de peso, de
timbre, de significado, de cor, à medida que trabalhava o coto descascado de um
membro ou reintroduzia numa barriga os intestinos que sobravam, nunca os
protestos me surgiram tão vãos, nunca os exílios jacobinos de Paria se me
afiguraram tão estúpidos: se me perguntam porque continuo no Exército respondo
que a revolução se faz por dentro, explicava o capitão de óculos moles e dedos
membranosos atrás do seu cigarro eterno, o capitão que puxou da pistola para o
pide magrinho que atirara um pontapé a uma rapariga grávida e o expulsou da companhia indiferente às
ameaças azedas do outro, o capitão de malas cheias de livros e de revistas
estrangeiras que me contavam do que eu não sabia e a quem me juntei meses mais
tarde na ilha e arame de Ninda, ao pé do rio, para a travessia sem bússola de
uma longa noite». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora
Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
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JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita,