quarta-feira, 23 de setembro de 2020

John Sack. A Conspiração Franciscana. «Tudo o que a multidão conseguia era manter o olhar fixo na mesma direcção dos olhos de Simone. Afinal, o cavaleiro viu o incenso queimando na ruela»

 
jdact

 Assis. 25 de Março de 1230

«O cavaleiro Simone della Rocca Paida esquadrinhava a viela onde os frades iriam aparecer. Andem; venham logo, seus ratos de igreja detestáveis. Vamos acabar com essa história infeliz. Empertigou-se sobre a sela e sacou a espada da bainha. Sua língua estava seca como um chumaço de lã. A multidão o irritava. Durante toda a manhã, levas de espectadores tinham acorrido à praça, sem se incomodar com o lixo que lhes chegava aos tornozelos nem com outra chuvarada que parecia prestes a desabar. O administrador-chefe da cidade, prefeito Giancarlo, havia declarado feriado, e não seria uma simples chuva de Primavera, muito menos a barreira erigida durante a noite, que iria estragar o espírito festivo. Os guardas-civis de Giancarlo tinham arrastado pedaços de madeira e blocos de mármore do canteiro de obras da nova basílica superior, ainda incompleta, para levantar um muro baixo que cortava a praça. Agora, os guardas afastavam as pessoas para trás do muro como peixes numa represa, onde elas se acotovelavam para conseguir a melhor vista. O burburinho ia aumentando com a aglomeração. Alguns se esforçavam, inutilmente, para ouvir o canto dos frades no meio do barulho. Tudo o que a multidão conseguia era manter o olhar fixo na mesma direcção dos olhos de Simone. Afinal, o cavaleiro viu o incenso queimando na ruela. Quando a procissão entrou na praça, um grande crucifixo emergia da fumaça e dos solidéus dos meninos que balançavam os incensórios. Tarde demais para hesitações.

Simone havia posicionado seus cavaleiros de frente para o espaço aberto diante da entrada da igreja superior. Fez um sinal de cabeça para os outros, colocou o elmo e alisou o cavanhaque para dar sorte. A mão se contraía sobre o punho da espada. Os joelhos apertaram as costelas do cavalo. Engoliu com força para vencer a secura da garganta e seguiu lentamente com seu animal em direcção ao espaço entre as pessoas e a procissão. Os cascos sugando a lama a cada passada e o suave chacoalhar da armadura do cavaleiro quase não perturbavam a cantoria da fila dupla de cardeais usando chapéu e batina vermelhos, que avançava devagar como uma centopeia brilhante ao longo do muro que cortava a praça. Nem eles nem os bispos com mantos de arminho que vinham em seguida demonstraram o mais leve temor dos cavalos que avançavam aos poucos. Tampouco as pessoas que se benziam e se ajoelhavam atrás da barricada. E porque haveriam de temê-los? Aqueles eram os guerreiros de Rocca Paida, a fortaleza no cume do morro que protegia a cidade. Todos haviam escutado rumores sobre a intenção dos habitantes de Perúgia de sequestrarem os restos mortais do santo. Pelo menos era isso que Simone esperava. O factor surpresa seria o seu melhor aliado. Atrás dos bispos vinham os frades e, bem no meio deles, os carregadores do caixão. Atravessaram a piazza ao longo da mureta da encosta que delimitava o seu lado sul. O crucifixo, os cardeais e os bispos já haviam descido o caminho de terra que levava à igreja inferior e esperavam em formação no pátio externo.

Chegara a hora. Quando o caixão começou a descer a ladeira, ele gritou: Adesso! Agora!, e cravou as esporas na sua montaria. O cavalo investiu contra a fila, distribuindo patadas com os cascos dianteiros, conforme fora treinado para agir durante as batalhas. Com ossos quebrados, um frade foi derrubado gritando de dor; outro saltou para o barranco a fim de se livrar do enorme animal. Simone sorriu sob o elmo e pôs-se a golpear ferozmente com sua espada. Ao girar vagarosamente o seu cavalo, viu os guardas-civis enfrentarem um grupo de homens que tentava escalar a barricada. Proteja o alto do caminho, ordenou ao cavaleiro a seu lado. Dois dos seus cavaleiros já desciam em direcção ao féretro, forçando os carregadores do caixão a se dirigirem para o pátio mais abaixo. A princípio, os frades cooperaram, correndo para o refúgio da igreja e a protecção do prefeito, que aguardava no início da estrada com o restante da guarda civil. Mas os homens de Giancarlo usaram as suas lanças para dispersar os prelados pelo pátio, provocando um alvoroço de mitras e mantos e saias arrebanhadas, cujos donos tentavam fugir em direcção ao caixão. Tarde demais, os frades se deram conta de que haviam caído numa armadilha. Simone açoitou o cavalo e desceu o morro, ao longo da trilha.

Mais em baixo, bem perto dele, um frade agarrara um guarda pelo braço e gritava com voz estridente. O guarda arremessou-o para fora da estrada com um golpe da sua manopla de metal, e o cavalo de Simone teve de saltar por cima do corpo que vinha deslizando ladeira abaixo. O cavaleiro somente olhou para trás quando chegou à base da colina. O capuz do frade voou longe, expondo uma longa trança negra. A viúva romana! Maldita! Ela não tinha nada que sair na procissão com os frades. Escorria sangue da sua face quando finalmente conseguiu se levantar, mas ela parecia não notar nem se importar. Fulminando-o com os seus olhos verdes, ela o desafiou mostrando o punho fechado: como se atreve, Simone? Como tem coragem de roubar o nosso santo? O cavaleiro respirou fundo ao ser acusado pelo próprio nome. Mais uma vez, desejou que o prefeito tivesse contratado guerreiros de outra cidade para fazer aquele trabalho sujo. Simone girou e galopou até a porta da igreja. Os guardas estavam agora com o caixão e arrancavam de cima dele o último frade, pequeno como um menino, que se agarrava a ele com toda a sua força. Por causa do seu tamanho, o cavaleiro presumiu que aquele deveria ser Leo, o anão. Após cercar a caixa de madeira, os homens de Giancarlo postaram-se atrás de Simone, enquanto os membros da igreja atiravam-lhes uma saraivada de pragas e maldições. O cavaleiro apeou e atirou as rédeas para um dos guardas.

Você vai arder no fogo do inferno, Simone!, vociferou alguém bem perto do seu ouvido. Ele se virou e ergueu a espada, mas o bispo de Assis levantou a cruz que levava ao pescoço para fazê-lo parar. Mordendo o lábio inferior, Simone abaixou a cabeça para entrar na igreja. O prefeito veio juntar-se a ele em seguida. Bem no portal da entrada, o mercador de lã estava à espera, ao lado do castelão da comuna de Todi. Ponham o ataúde no chão, ordenou Giancarlo aos seus homens. Depois, mandou que fossem para fora, defender o pátio. Assim que os guardas saíram, ele e o cavaleiro fecharam a porta com uma barra pesada de madeira que ia de um lado a outro. O prefeito encostou-se no painel entalhado, ofegante, enquanto Simone levantava o elmo e secava a testa com a manga de seu gibão de couro acolchoado. Foi somente quando o cavaleiro repôs a espada bainha que notou vestígios de sangue ressecado na lâmina. Cada vez pior, pensou, sombrio». In John Sack, A Conspiração Franciscana, 2005, Edição O Quinto Selo, 2006, ISBN 978-989-613-048-0.

Cortesia de EQuintoSelo/JDACT

JDACT, John Sack, Itália, Literatura, Conhecimento,