sábado, 12 de setembro de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… porque ele acrescentou: quer isto dizer que ireis para Roma. Não gostais da notícia? Para Roma? Eu?, perguntava interdito, desorientado, sem saber que pensar, deixando-me cair sentado numa cadeira…»

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A porta do mundo

«(…) Comprei também estes dois folhetos e, enquanto retomava caminho, abri o último. Era escrito em redondilha maior e logo no começo rezava assim:

Entre Sintra, a mui prezada, e serra de Ribatejo que Arrábida é chamada, perto donde o rio Tejo se mete na água salgada, houve um pastor e pastora que com tanto amor se amaram como males lhe causaram este bem, que nunca fora, pois foi o que não cuidaram.

Era a história de um casamento a furto, que as convenções do mundo, concretizadas nos interesses de nome e de riqueza, contrariavam, obrigando a rapariga a recolher ao Convento de Lorvão e a renegar do seu primeiro amor, tornando infeliz o pobre do rapaz. Enfim!, suspirava eu, num desalento moral por ver como tão mesquinhas coisas fazem as pessoas mal-aventuradas. É destas mágoas que vivem os poetas!... Tornava a deitar um lance de olhos àqueles versos e a coincidência da localização desses amores, entre Sintra e a Arrábida, trazia-me à lembrança aquele outro caso do fundador do convento dos capuchos franciscanos nesta serra... E de súbito eis que o próprio texto lhe faz referência! Por um extraordinário artifício tudo era contado como se tratasse de uma imaginária viagem aérea do poeta, que descreve os montes e os vales, os rios e as árvores, caminhos e casas, pessoas e gados, como se fossem pequenos pontos vistos de cima, miniaturais, lá muito em baixo. Não era para mim total novidade o facto. Havia lido aquele relato de uma viagem à Lua feito pelo grego Luciano de Samósatos, no século XI da nossa era, no seu Icaromenipo. O filósofo cínico Menipo, desejoso de saber como está organizado o universo, resolve ir lá acima ver com seus próprios olhos como é que as coisas se processam. Arranja umas asas de abutre e de águia, adapta-as e ajusta-as muito bem às suas espáduas e ei-lo no ar passando sobre o Himeto, o Acrocorinto, o Erimanto e o Talgeto, voando mais alto que o Olimpo, até chegar à Lua. Daí, olhando a poeira dos astros no meio da qual dificilmente identificaria a Terra se não fosse reconhecer o colosso de Rodes e a torre do farol de Alexandria, tece desenganadas considerações sobre a pequenez e insignificância do homem no seio do cosmo e que não vale a pena estragar a breve existência com tristezas e compaixão de nós próprios. Tinha eu também algumas vagas notícias de histórias orientais das Mil e Uma Noites em que se citavam viagens maravilhosas feitas em tapetes voadores. Por outro lado, a visão panorâmica do mundo, vista de um ponto alto, tinha-a igualmente lido em Cícero, no Sonho de Cipião, e conhecia-a muito bem do Evangelho, na cena da tentação de Cristo, quando o diabo o leva ao cimo de uma montanha... Mas o que de súbito me impressionou, na narrativa da viagem de Crisfal, é que em dado momento ele, ao olhar para baixo quando passava por terras de Azeitão, nas vertentes da Arrábida, vê um tal Natónio vestido de luto e chorando de amores contrariados, como os seus, e lamentando a infidelidade da amada, exclamando entre soluços: Ah! Guiomar! Guiomar! Não tive dificuldade em identificar esse Natónio. Teria ele já decidido casar, conforme aquele conselho que lhe dei em verso, quando estive em sua casa? Prouvera a Deus que sim e que também o pobre do Cristóvão Falcão pudesse superar a sua mágoa, que, embora a dor alheia atenue a nossa própria, não me parece salutar remoer sentimentos frustrados... O tempo se encarregou de me dar resposta a essa interrogação do meu espírito, pois, passados dois anos, estando eu em meu remansoso estudo no Convento de Enxobregas, me veio ao conhecimento ter o senhor de Azeitão tomado estado com uma senhora muito nobre, dona Juliana Lara, e que a partir daí el-rei, desejando sanar feridas antigas, além de o querer frequentemente na corte e de lhe ter concedido o título de duque, o incumbia de embaixadas importantes, como a de encabeçar, na companhia do bispo de Coimbra, João Soares, a comitiva que receberia na raia de Espanha a princesa dona Joana, noiva do príncipe João. Soube também das tontices do velho duque de Coimbra, Jorge, que com a idade de sessenta e sete anos pretendeu casar ou ter casado com uma lindíssima menina de dezasseis, que era açafata da rainha, o que muito os filhos e o próprio rei contrariaram e o povo comentava divertido. No sorvedouro do tempo, muitas coisas no reino estavam a acontecer que eu só viria a conhecer bastante depois, dado que também a minha vida ‘ em tempo em que eu me encontrava descuidado de qualquer desejo, levou de súbito uma reviravolta a que havia muito não estava habituado e que me afastou para fora do meu país. Foi o caso que um dia o dom Abade me mandou chamar e me disse: tenho para vós, irmão frei Pantaleão, recado de monta, por minha fé. Vem do nosso provincial, que por sua vez o recebeu do nosso padre geral. Muito humilde e calado deveis de ser que tão bem escondeis a vossa familiaridade e conversação com pessoas de influência, porque o que vos vou dizer vem certamente tocado de muito alto.

Não estou a entender vossa paternidade, disse-lhe eu, com sinceridade e sem saber que pensar, em minha expectativa. Olhou-me com um sorriso e uma expressão que traduziam o sentimento de que compreendia bem a minha discrição, o que me incomodou porque eu não estava a ser discreto de coisa nenhuma, visto não conhecer o que se passava. Sois destacado, disse-me, acentuando lentamente as sílabas como a prolongar e empolgar a notícia, para ajudante do secretário-geral da nossa ordem junto da Cúria romana..., e deveis partir quanto antes. A princípio não entendi e a expressão do meu rosto deve ter sido significativa, porque ele acrescentou: quer isto dizer que ireis para Roma. Não gostais da notícia? Para Roma? Eu?, perguntava interdito, desorientado, sem saber que pensar, deixando-me cair sentado numa cadeira, perante o ar risonho do meu superior...» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

 Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,