Apresentação
Escrever estrelas (ora, direis)
«Clarice Lispector deixou vários depoimentos sobre a sua produção
literária. Em alguns, parecia se defender do estranhamento que causava em
leitores e críticos. Ela tinha consciência de sua diferença. Desde pequena, ao
ver recusadas as histórias que mandava para um jornal de Recife, pressentia que
era porque
nenhuma contava os factos necessários a uma história, nenhuma relatava
um acontecimento. Sabia também, já adulta, que poderia tornar mais atraente
o seu texto se usasse, por exemplo,
algumas das coisas que emolduram uma vida ou uma coisa ou romance ou um
personagem. Entretanto, mesmo arriscando-se ao rótulo de escritora difícil,
mesmo admitindo ter um público mais reduzido, ela não conseguiria abrir mão de
seu traçado:
- Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro.
Ela se afastou dos escritores que por opção e engajamento defendem
valores morais, políticos e sociais, outros cuja literatura é dirigida ou
planificada a fim de exaltar valores, geralmente impostos por poderes políticos,
religiosos etc., muitas vezes alheios ao escritor, em nome de uma outra
forma de questionar a realidade e nela intervir, através da literatura. Talvez
sem o saber, Clarice estava optando
por um tipo de escrita característica do escritor moderno, para quem, no dizer
do crítico francês Roland Barthes, escrever é fazer-se o centro do processo de
palavra, é efectuar a escritura afectando- se a si próprio, é fazer coincidir a
acção e a afeição (...). Por esta via, formula-se uma outra qualidade
de experiência envolvida na escrita, uma nova perspectiva pela qual a linguagem
é concebida: mais importante do que relatar
um facto, será praticar o autoconhecimento e o alargamento do conhecimento do
mundo através do exercício da linguagem.
A hora da estrela leva esta proposta às últimas consequências e por
isso a sua leitura torna-se tão instigante. É certo que aqui reencontramos a
agudeza na investigação da natureza e psicologia humanas e o gosto pela
minúcia, patente no trato dado à palavra, tão peculiares a Clarice Lispector. Mas se lermos o livro como hora e vez, inserindo-o no conjunto de sua obra,
constataremos que existe algo de novo para além do insólito prefácio, em forma
de dedicatória, da frouxidão do enredo, da mescla de linguagem subtil com um
tom desnudo e cru ou, ainda, da intimidade com que o choque social é
apresentado. É que aqui a Autora aborda de frente o embate entre o escritor
moderno, ou melhor, do escritor brasileiro moderno, e a condição indigente da
população brasileira. Isto sem deixar de lado, afinal de contas, traz a assinatura
de Clarice Lispector, a reflexão
sobre a mulher.
A discussão se arma a
partir de estórias que se entrecruzam, como num acorde musical:
- a da vida de Macabéa, imigrante nordestina que vive desajustada no Rio de Janeiro;
- a do Autor do livro que, embora sem rosto definido, se dá a conhecer nos comentários que faz;
- e ainda a estória do próprio acto de escrever.
Em verdade, esta última
estória promove o grande elo entre todas. Escrever o livro, escrever Macabéa e, sobretudo, escrever a
si mesmo, eis o grande desafio. Dessa proposta cria a dramaticidade da
narrativa, pois a escrita envolve múltiplas e complexas relações: entre escritor e seu texto, entre escritor e seu público, entre escritor e esta personagem tão
distante de seu universo. A linguagem, moeda de comunicação entre os
homens, ganha foros de personagem. E personagem em crise. Emergem
indagações:
- a palavra que se usa expressa o que se é verdadeiramente? É a linguagem que funda a realidade? A palavra distancia ou aproxima pessoas? Dispor da palavra é um dom ou uma maldição? Que palavra cabe ao artista contemporâneo? Que palavra se adequa ao escritor terceiro-mundista para falar de um Brasil miserável? Que papel se espera do artista?
Assim posto, o enredo,
fugaz em aparência, revela algumas de suas linhas de sustentação. Está em jogo
a linguagem, seu poder de conhecimento, de comunicação e de convencimento, e,
com ela, debatem-se a existência humana e os laços sociais. O patente isolamento
das pessoas parece conduzir a uma reflexão sobre a condição do ser humano,
agravada por um tipo de organização social que segrega os indivíduos entre si.
E o artista constata este exílio do homem na própria terra, mas não tem
respostas prontas que o justifiquem. Esta inquietação o move, faz com que escreva
e tente descobrir na escrita a sua própria identidade e a sua própria
humanidade, cara a cara com as de uma outra qualquer pessoa. Em A
hora da estrela este empreendimento assume uma ousadia e uma profundidade
inusitadas. O escritor solta as amarras e vai até o fundo do poço: as origens do ser e as contradições da
sociedade em que vive. Para tal, tomando por base a linguagem, ele se
dispõe a três tipos de abordagem: filosófica, social e estética».
In
Clarice Lispector, A Hora da Estrela, Editora
Francisco Alves, correção de Doralice, CDD - 869.93, CDU 869.0(81)-3.
Cortesia de Editora F.
Alves/JDACT