«A situação criada com o baptismo forçado era explosiva. Qualquer sinal
de hipotético judaísmo poderia gerar a animosidade cristã. Na verdade, cristão-novo,
converso convicto ou não, permanecia
eternamente judeu aos olhos da população maioritariamente cristã. Foi nesta
conjuntura, favorável ao antijudaísmo, que o citado cristão-novo cometeu a
imprevidência. Mal proferiu a contraproducente blasfémia, o povo caiu sobre ele, arrastou-o para a rua e
agrediu-o barbaramente até cair inanimado. Prostrado no Largo de S.
Domingos, foi identificado pelo irmão, que se debruçou sobre o seu cadáver e
gritou lancinantemente: Quem matou meu
irmão?!. Acto contínuo, foi igualmente executado pela turba, que, de
pronto, acendeu uma fogueira e queimou os dois infelizes cristãos-novos.
Num clima de intolerância crescente, surgiu um frade que proferiu um
inflamado sermão antijudaico, enquanto o povo se aglomerava em torno da
redentora fogueira aos quais se juntariam mais dois frades dominicanos, frei
João Mocho e frei Bernardo, exibindo o crucifixo milagreiro e fazendo apelos sanguinários contra os judeus: Heresia! Heresia! Destruam o povo
abominável!.... E assim se espalhou o povo pelas ruas de Lisboa, procurando
cristãos-novos que passavam desprevenidos, forçando a entrada nas suas casas,
capturando aqueles que se haviam recolhido nas igrejas, carregando mortos e
vivos para as fogueiras que se acendiam na capital. Foram três dias de terror, pilhagem e carnificina, de que
resultariam, de acordo com os cronistas coevos, entre dois e quatro mil mortos.
Na Miscelânea
de Garcia de Resende e na Symmicta Lusitana, alegação dos
judeus ao papa Paulo III contra a Inquisição (maldita), defende-se as quatro
mil vítimas e Damião de Góis, na Crónica de D. Manuel, fica-se pelas
mais de 1900 almas. O número de duas mil vítimas é o mais consensual entre os
historiadores, de Alexandre Herculano a Yosef Yerushalmi.
O rei Manuel I protelou a sua intervenção no motim e só o fez quando já
não havia vítimas para queimar nas fogueiras. Nem Álvaro de Castro, o
governador da Casa do Cível, nem Aires da Silva, o regedor da Casa da
Suplicação conseguiriam demover a populaça tresloucada, quando tentaram acalmar
os ânimos. Embora tardiamente, o rei, informado dos factos quando passava por Avis
em direcção a Évora para visitar sua mãe enferma, castigou duramente o povo de
Lisboa: sentenciou os responsáveis pela chacina a penas corporais e à perda dos
seus bens a favor da Coroa; mesmo os que não tivessem participado no massacre e
no saque perderiam um quinto dos seus bens; suspendeu a eleição dos
representantes da Casa dos Vinte Quatro e dos seus quatro representantes à
vereação municipal lisboeta; retirou as honrarias da cidade; mandou executar
cerca de meia centena de amotinados e os dois frades dominicanos, frei João
Mocho e frei Bernardo, verdadeiros instigadores do massacre.
Entre os populares lisboetas e os frades dominicanos estavam
marinheiros estrangeiros, designadamente alemães, que ajudaram à barbárie, mas
que também deixaram relatos escritos, que circulariam no seu país, reportando o
sucedido. São fontes pouco conhecidas em Portugal, cujos historiadores se têm
cingido aos cronistas que não assistiram aos acontecimentos: Damião de Góis
(Crónica
do Felicíssimo rei D. Manuel), nascido em 1502; Samuel Usque (Consolação às Tribulações de Israel),
nascido entre 1495-1500; Jerónimo
Osório (De Rebus Emmanuelis Regis Lusitaniae), nascido no próprio ano
do massacre. Todos eles eram demasiado jovens para compreender os
acontecimentos.
Foi o historiador Yosef Yerushalmi quem divulgou novas fontes,
tais como os citados panfletos alemães e uma interessante obra de Salomon
lbn Verga, um judeu espanhol exilado em Lisboa, que também terá presenciado
(parcialmente?) os
acontecimentos. De acordo com este último, o
milagre fora inventado pelos dominicanos, que teriam congeminado a luz por
detrás do crucifixo, criando a ilusão de estar a irradiar daí». In
Breve História dos Judeus em Portugal, Jorge Martins, Nova Vega, colecção
Sefarad, 2011, ISBN 978-972-699-920-1.
continua
Cortesia de Nova Vega/JDACT