«Não interessa recordar que impedimentos atrasaram a nossa viagem, mas,
por fim, chegámos; trouxeste-me no teu carro até ao cais, e remaste depois,
rindo, enquanto eu me divertia à tua custa: queria recordar o teu nascimento
nas margens de um mar glorioso, e que as águas de um lago não muito grande,
embora sendo tão bonito como este nosso (onde, segundo me contaste uma vez,
vens patinar no Inverno), são apenas arremedo daquelas outras, azuis, apesar de
cinzentas às vezes, e nem sempre tranquilas, que te embalaram com a sua canção
antiga, e às quais não queres voltar, nunca quis saber porquê, talvez pelo
receio de que esse canto se tenha calado para sempre, ou pelo medo que tens de
recuperar, de nunca perder, esses monstros da tua infância de que às vezes te
lembras e que te fazem estremecer; meros fantasmas, fazem-te tremer: o que não
seria se visíveis? Bastava esse segredo noutro tempo para que eu desatasse a
inquirir, a conjecturar também, sem alcançar uma conclusão suficiente, uma
hipótese satisfatória pelo menos, algo; ainda imagino, quando me ponho a
sonhar, que nessa tua infância junto às pedras mais bonitas do mundo, um não
sei quê ou não sei quem deixou a tua alma ferida, fez-lhe mal: isso de que te
queixas às vezes sem te queixares, com um suspiro ou um esgar que de boa
vontade evitarias, pois sabes, talvez, o que revelam. A verdade é que sei pouco
de ti, apesar do muito que temos falado, noite após noite, muitas tardes
também, desde aquela primeira em que vieste à procura do professor Alain e ele se
tinha ido embora. Lembras-te? Claro que sim, e não sei por que diabo to
pergunto! Ainda que talvez o saiba sobejamente, e tu também, e o porquê vou
repeti-lo aqui com algumas variantes, bem como outras coisas das comuns faladas
ou vividas, que já vão sendo muitas; mencionarei as necessárias para que fique
cabal a história, a que agora começa, ou começou quando te disse que sim, que
alugaria a cabana da ilha, que viveria nela até ao anúncio das neves: todo um
trimestre, pois, todo o Outono. O que nunca te contei foi a maneira como o
professor Alain me falara de ti, não uma vez, mas sim com insistência, até se
tornar aborrecido, e numa delas disse-me que o tinhas beijado na boca. Oh, de que
modo indelével me ficou na memória aquela imagem!
Como falava em francês, ao dizer bouche pôs a sua de maneira
especial, como se fosse devolver-te o beijo, como se ainda estivesse à espera
dele ou, talvez, como se fosse assobiar. Bom, se calhar não foi mais do que uma
brincadeira, ou mais uma troça que de si mesmo o professor fizesse, a quem a
maldita educação inglesa não permite expressar os seus sentimentos com a
espontaneidade apetecida, essa com que nós damos saída às nossas coisas, seja
de regozijo ou de pena. Não te parece que são essas minúcias as que mais nos
afastam de pessoas como ele? Cuidado que eu gosto dele, e que o admiro, e que
levaria a minha amizade até extremos que ele próprio não suspeita; cuidado que
me rio quando me conta as suas piadas, que não conheci ninguém com mais graça
do que ele; mas, como vês, embora eu não seja, estritamente falando, um verdadeiro
filho do Mediterrâneo, como tu, e embora também a minha educação me tenha obrigado
de certo modo a refrear com hipocrisia temperada a manifestação aberta dos meus
sentimentos, existe uma diferença bastante grande entre o que eu faço e o que
ele faz, porque eu sobreponho à emoção ou à paixão a máscara da ironia, está
claro, e ali ficam como duas folhas secas que tivessem caído juntas
(disseste-me uma vez que isso se nota em mim, quando troço, que é o que levo
realmente a sério); enquanto o professor substitui uma coisa pela outra e esconde
aquela em não sei que estranhos abismos do seu espírito.
E a mim parece-me que isso o prejudica, porque com muita frequência é
preferível partir com um murro a tábua da mesa ou a cara dum amigo, a dominar o
impulso e deixar que um sorriso o suplante, ou talvez uma mot d’esprit, que a ninguém
servem, na verdade, de desabafo. Dir-me-ás, com razão, que o professor teria de
partir muitas mesas e muitas caras, sobretudo nos últimos tempos, mas, pelos
menos estaria tranquilo, e tu com ele. Naquela noite em que vieste vê-lo, e que
ele se tinha ido embora, e então te acolheste à minha porta com o pretexto de
averiguar se eu sabia algo da sua ausência, se tinha ido de viagem, ou se só à
Praça Stuyvesant fazer compras, penso que o professor devia ter partido algo muito
forte e duro, a porta da sua casa ou da minha; ou, melhor ainda, derrubado a
parede com um bom pontapé, pois nesse caso tudo teria mudado e não estaríamos
agora na ilha dos Jacintos Cortados,
The
Isle of the Cut Hyacinths, no Indian
Lac, cada um de nós nas suas coisas, mas próximos como já o estamos por
essas ninharias a que antes me referi e que irão saindo pouco a pouco; talvez
também, mais que pelo passado unidos, pelo que vier a acontecer: incógnita que
me empurra, contra toda a previsão, contra os meus próprios hábitos precavidos,
a escrever este caderno às escondidas de ti, ainda que a ti destinado». In Gonzalo
Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A
Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água,
1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT