«A rainha tomou então uma decisão. - Marchad a preguntar a mi hijo se he yo de morir - demandou
ela com intrepidez. Trouxeram-lhe a resposta daí a pouco. O rei pedia-lhe que
subisse à câmara e sossegasse, sem nenhum temor ou mal. Não juntava a mãe,
mesmo mal persuadida, a quatro vassalos desobedientes, em armas contra ele.
Aqueles homens tudo haviam feito para merecer a mais mesquinha das mortes. Não
assim a mãe, que andara apenas mal avisada. - Pues así es, id pedir permiso para me devolver a mi reino natal. Não
queria voltar a ver os olhos vidrados do filho, a sua estatura de colosso e os
seus cabelos ruivos, cheios de fogo e de ira. Depois daquele cataclismo, estava
resolvida a uma solução extrema. Se não tinha de morrer, exigia então partir de
imediato, sem nada pedir para si. O sentido da sua vida dissolvia-se naquela
chuva que soava lá fora e lhe levava o sangue dos validos fiéis. Nada queria, a
não ser arrancar aquelas quatro crianças ao clarão sangrento do drama que as
tornara órfãs. O que lhe sobrava cabia na escarcela duma clarissa.
Tinha, além da pálida lembrança dos dias de juventude, que procurava
avivar para estimular o apetite da viagem, o desejo de colocar a salvo, do
outro lado da fronteira, os quatro inocentes que ficavam sozinhos no mundo.
Estava pobre mas com uma missão. Se a pobreza era no seu caso a forma pela qual
se desembaraçava dos desaires do presente, a missão era aquilo que a obrigava a
fugir para o futuro. O filho, saciada a sede do mais horroroso dos instintos,
que é o da vingança, aquietara. Os conselheiros, empenhados por obrigação em
esconder os desacertos do rei, e que num homem assim exposto podiam ser tão
fatais como uma queda, viram na partida da rainha um alívio. Bem vistas as
cousas, um lugar vazio, na carnificina em que se estava a tornar a galeria de
Pedro de Castela, sempre era uma vantagem; ficava quedo, mudo e sobretudo sem
esguichar sangue. Um rei assim ameaçava tornar-se uma questão insolúvel. Ou
reinava num deserto, sem súbditos, ou desbancado era por eles.
A rainha-mãe teve razão!; Aldonça de Vasconcelos, viúva de Martim
Afonso Teles, não resistiu mais do que umas magras horas à notícia da morte
do marido. Moribunda como estava, mal se apercebeu do sucedido, afundou-se num
delírio agónico de que não mais regressou. Restou à rainha soterrar a infeliz e
tomar os órfãos a seu cuidado, apressando a partida para o exílio. O rei
pôs-lhe à disposição uma escolta de cavaleiros, bons entendedores de caminhos.
Viajar num tempo em que as estradas nem sequer existiam era uma obra de sorte
ou de experiência, para além de ser um caso de paciência. Um cavaleiro, com a
montada folgada, avançava por entre pedras e urzes doze léguas por dia, ao
passo que um séquito onde viajavam donas e crianças não alcançava porventura
metade desse espaço.
Ora de Toro, na linha do Douro, à fronteira portuguesa, passando
por Cidade Rodrigo, contavam-se para cima de quarenta léguas, o que tornava
essa viagem uma forte despesa de tempo. Ainda assim, com a pressa de se ver
longe dos lugares do infortúnio, a filha de Afonso IV não levou sequer quatro
dias a chegar à Guarda. As crianças iam de churrião puxado por quatro possantes
muares e a rainha, para melhor se manter de sentinela, montava à amazona uma azémola
ligeira, que a espaço trocava por outra mais desafogada.
Quando deu por si na fronteira portuguesa lembrou-se que não vislumbrava
terra natal desde que há mais de quinze anos viera pedir ajuda ao pai. Na vila
de Almeida tinha um ministro do pai à espera, o fero Diogo Lopes Pacheco,
que fora um dos matadores da linda Inês
no paço de Santa Clara de Coimbra. Lembrava-se de ver na alcáçova de
Lisboa o pai deste Pacheco, Lopo Fernandes de Pacheco, que morrera no
surto pestífero de 1348 e fora o
primeiro rico-homem de Afonso IV. A ordem do rei era que a filha e os órfãos se
retirassem de imediato para a cidade de Évora na companhia do ministro e sua
escolta de armas. Não se percebia se o mandado do rei fazia parte da sua
cautela estratégica em situações de perturbação no reino vizinho ou se era
parte apenas dum obscuro plano de sentimentos. Na verdade, não era nem
prudência nem cisma, mas apenas o fruto do abatimento em que o rei andava». In
António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa,
2009, ISBN 978-989-8092-59-5.
Cortesia de Ésquilo/JDACT