sexta-feira, 19 de abril de 2013

António C. Franco. Memória de Inês de Castro. «A verdadeira Espanha islâmica, tolerante, filosófica, aberta e até aristotélica, quando isso não implica a sujeição dum neo-platonismo extremamente importante, ardia debaixo do fanatismo militar europeu ou africano»

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«A filosofia, que tanto floresceu nas escolas da Hespanha muçulmana, numa das raras épocas em que se pode com propriedade falar de Hespanha, não era decerto o melhor sinal desse instinto de organização militar, já que a liberdade de saber não se ajustava de modo nenhum ao rigor e à paixão da guerra. A Hespanha muçulmana existiu como um dado social e antropológico indesmentível, a ponto de ter sido o único ponto do mundo árabe onde se criou um califado novo. O califado era, em princípio, o ponto único de obediência do mundo muçulmano, uma espécie de pedra colocada no meio do deserto, e o califa o representante de Maomé na terra. A existência dupla de dois califados no mundo árabe, veio desde logo criar problemas inumeráveis, que pareciam desmentir o intransigente monoteísmo islâmico. Os Omíadas, que foram os cisionistas, foram acusados de politeístas e Córdova, sede escolhida para novo Califado, tornou-se de facto numa cidade única no mundo árabe, cheia de plurais interesses, que contrastava, pela sua rica diversidade, com todas as outras. Córdova no século X, quando Abd-ar-Rahman disse, com lucidez, pretender a fusão de todas as raças da Península, devia ter quase meio milhão de habitantes e os mercadores de livros abundavam quase tanto como os de tâmaras e passas secas.
Toda a filosofia ou estratégia militar da Península não pertenceu nunca ao árabe, que veio mais das refrescantes praias litorais do Iémen do Sul do que dos ardentes palmares de Medina ou Meca, onde o profeta entrou em 629,mas sim ao berbere do Norte de África que, arrancado aos altos contrafortes dos sistemas montanhosos do Magreb, possuía uma intrepidez que conjugava um máximo de aspiração religiosa com um máximo de astúcia política e eficácia militar. O Magreb é, nesse sentido, ao contrário da Hespanha árabe, uma repetição ainda mais acentuada do que aconteceu com os caraveneiros da Arábia Saudita.
Foi o génio africano de Marrocos que deu ao islamismo o carácter dum a religião intolerante, mantendo uma ortodoxia e desenvolvendo um espírito de imposição militar que não estava no espírito mais fundo, que é ainda o mais religioso, da hégira de Maomé. Os almorávidas pertenciam a várias tribos berberes do Sara e os almóadas eram berberes do Atlas marroquino. Ambos tinham conquistado o Norte de África, unificando sob um comando único várias tribos, e intervindo decisivamente na política militar da Península, acabando por conquistar o que restava da Espanha muçulmana. Indiferentes às particularidades do mundo árabe peninsular, os berberes do Norte de Africa saqueiam sinagogas, incendeiam igrejas e substituem a filosofia, tão própria do espírito islâmico peninsular, pela religião. Era uma asfixia brutal do passado e a introdução duma mentalidade de antagonismos e de divisões brutais, que continuou depois a sangrar, como uma ferida ou uma pústula mal sarada. Em línguas religiosas diversas, por vezes mesmo anti-religiosas, a oração, daí por diante, sempre a mesma: Em Espanha não se permitem heresias.
Toda a tentativa, feita a partir de 1330 por Ali Boacem, sultão de Fez, de contra reconquistar a Península aos Almóadas no domínio do Norte de Africa, era exactamente igual ao dos seus predecessores. A verdadeira Espanha islâmica, tolerante, filosófica, aberta e até aristotélica, quando isso não implica a sujeição dum neo-platonismo extremamente importante, ardia debaixo do fanatismo militar europeu ou africano. Era sempre a medo que os reis das últimas províncias árabes de Hespanha se dirigiam ao rei de Marrocos, pedindo auxílio. Este recebia-os em Fez a comer tâmaras e a beber leite coalhado com cardo do deserto, ouvia-os atentamente e preparava-se dias depois para reconquistar a Península tanto aos cristãos como aos muçulmanos das províncias do Sul. Aconteceu isso com os Almorávidas, com os Almóadas e agora com Ali Boacem.
Quando este foi chamado por Muahmad de Granada, em 1330, não se deixou convencer senão exteriormente das razões indicadas pe1o rei de Granada. No fundo, ele entrevia uma grande epopeia militar, capaz de refazer o brilho e o esplendor dos tambores almorávidas, que na célebre batalha de Sacralias, que se deu em 1086, entre Elvas e Badajoz, cantaram toda a noite a sangrenta vitória que o africano obteve sobre o poderoso rei Afonso VI de Leão. Na madrugada duma batalha o almorávida, praticamente depois de desembarcar na Península, enviava como sinal, para os quatro cantos da Hespanha muçulmana, pilhas de cadáveres degolados. Era sobre eles que devia começar, por ordem expressa do africano, a oração da manhã». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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