«A filosofia, que tanto floresceu nas escolas da Hespanha
muçulmana, numa das raras épocas em que se pode com propriedade falar de
Hespanha, não era decerto o melhor sinal desse instinto de organização militar,
já que a liberdade de saber não se ajustava de modo nenhum ao rigor e à paixão
da guerra. A Hespanha muçulmana existiu como um dado social e antropológico
indesmentível, a ponto de ter sido o único ponto do mundo árabe onde se criou
um califado novo. O califado era, em princípio, o ponto único de obediência do
mundo muçulmano, uma espécie de pedra colocada no meio do deserto, e o califa o
representante de Maomé na terra. A existência dupla de dois califados no mundo
árabe, veio desde logo criar problemas inumeráveis, que pareciam desmentir o
intransigente monoteísmo islâmico. Os Omíadas, que foram os cisionistas,
foram acusados de politeístas e Córdova, sede escolhida para novo Califado,
tornou-se de facto numa cidade única no mundo árabe, cheia de plurais interesses,
que contrastava, pela sua rica diversidade, com todas as outras. Córdova no
século X, quando Abd-ar-Rahman disse, com lucidez, pretender a fusão de
todas as raças da Península, devia ter quase meio milhão de habitantes e os
mercadores de livros abundavam quase tanto como os de tâmaras e passas secas.
Toda a filosofia ou estratégia militar da Península não
pertenceu nunca ao árabe, que veio mais das refrescantes praias litorais do Iémen
do Sul do que dos ardentes palmares de Medina ou Meca, onde o
profeta entrou em 629,mas sim ao berbere
do Norte de África que, arrancado aos altos contrafortes dos sistemas montanhosos
do Magreb, possuía uma intrepidez que conjugava um máximo de aspiração
religiosa com um máximo de astúcia política e eficácia militar. O Magreb
é, nesse sentido, ao contrário da Hespanha árabe, uma repetição ainda mais
acentuada do que aconteceu com os caraveneiros da Arábia Saudita.
Foi o génio africano de Marrocos que deu ao islamismo
o carácter dum a religião intolerante, mantendo uma ortodoxia e desenvolvendo
um espírito de imposição militar que não estava no espírito mais fundo, que é
ainda o mais religioso, da hégira de Maomé. Os almorávidas pertenciam a várias tribos berberes do Sara e os almóadas
eram berberes do Atlas marroquino. Ambos
tinham conquistado o Norte de África, unificando sob um comando único várias
tribos, e intervindo decisivamente na política militar da Península, acabando
por conquistar o que restava da Espanha muçulmana. Indiferentes às
particularidades do mundo árabe peninsular, os berberes do Norte de Africa
saqueiam sinagogas, incendeiam igrejas e substituem a filosofia, tão própria do
espírito islâmico peninsular, pela religião. Era uma asfixia brutal do passado
e a introdução duma mentalidade de antagonismos e de divisões brutais, que
continuou depois a sangrar, como uma ferida ou uma pústula mal sarada. Em
línguas religiosas diversas, por vezes mesmo anti-religiosas, a oração, daí por
diante, sempre a mesma: Em Espanha não
se permitem heresias.
Toda a tentativa, feita a partir de 1330 por Ali Boacem, sultão de Fez, de contra reconquistar a
Península aos Almóadas no domínio do Norte de Africa, era exactamente
igual ao dos seus predecessores. A verdadeira Espanha islâmica, tolerante,
filosófica, aberta e até aristotélica, quando isso não implica a sujeição dum
neo-platonismo extremamente importante, ardia debaixo do fanatismo militar
europeu ou africano. Era sempre a medo que os reis das últimas províncias árabes
de Hespanha se dirigiam ao rei de Marrocos, pedindo auxílio. Este recebia-os em
Fez a comer tâmaras e a beber leite coalhado com cardo do deserto, ouvia-os
atentamente e preparava-se dias depois para reconquistar a Península tanto aos
cristãos como aos muçulmanos das províncias do Sul. Aconteceu isso com os Almorávidas,
com os Almóadas e agora com Ali Boacem.
Quando este foi chamado por Muahmad de Granada, em 1330, não se deixou convencer senão
exteriormente das razões indicadas pe1o rei de Granada. No fundo, ele entrevia
uma grande epopeia militar, capaz de refazer o brilho e o esplendor dos
tambores almorávidas, que na célebre
batalha de Sacralias, que se deu em 1086, entre Elvas e Badajoz, cantaram toda a noite a sangrenta
vitória que o africano obteve sobre o poderoso rei Afonso VI de Leão. Na
madrugada duma batalha o almorávida, praticamente depois de desembarcar na Península,
enviava como sinal, para os quatro cantos da Hespanha muçulmana, pilhas de
cadáveres degolados. Era sobre eles que devia começar, por ordem expressa do
africano, a oração da manhã». In António
Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.
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