«Logo no último quartel
do século XIX se encontram os pioneiros desta literatura. Mas é no período
20/30 do século XX que ela vai atingir o ponto maior: na quantidade, na marca
colonialista, na aceitação do público que esgota algumas edições, com certeza motivado
pelo exótico. Aí se destaca um naipe
todo ele incapaz de apreender o homem africano no seu contexto real e na sua
complexa personalidade. É certo que justo será destacar pela qualidade de sua
escrita João de Lemos, Almas negras, 1937, porque nele, apesar de
uma deficiente visão, se denota um meritório esforço de análise e intenção
humanística. Mas, escritor português, manietado pela distanciação colonialista,
por norma, dá ao seu discurso um sentido racista, hoje de inconcebível aceitação.
Henrique Galvão: A sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos,
O vélo d’oiro, 1936; ou: Era um negro esguio [o Mandobe] que dava
a impressão [...] dum excelente animal de corrida; Hipólito Raposo (Ana
a Kalunga, 1926) na glorificação mística imperial: Queimados no ardor silencioso de
Golfo, em todo o peito português vai estremecendo o marulhar heróico dos Lusíadas, e outros (muitos)
como António Gonçalves Videira, João Teixeira das Neves, irmão de Teixeira de Pascoaes, Brito
Camacho, Contos selvagens (1934). Prolonga-se este tipo de
literatura até aos nossos dias, com tendência, no entanto, para reflectir os
efeitos de uma perspectiva humana ajustada à evolução das condições históricas
e políticas, porventura o caso de Maria da Graça Freire (A primeira
viagem, 1952) e, noutro aspecto, na actualização de uma linha que vem de Hipólito
Raposo, citaríamos António Pires, (Sangue Cuanhama, 1949).
Essa incapacidade de penetrar no mundo africano terminou por se instalar na
consciência de um ou outro (poucos) mais atentos, mais apetrechados do ponto de
vista teórico, como é o caso de José Osório de Oliveira, que se
interroga a si próprio: Conseguirei escutar nesta viagem, a voz da
raça negra? (Roteiro de África, 1936.
O tempo histórico, o
tempo cultural, para quem, ideologicamente, era incapaz de se furtar à insidiosa
instauração do fascismo em Portugal e à inscrição legal do assimilacionismo (aí
vinha já o célebre Acto Colonial, de 1930), não permitia ou não ajudava a uma
tarefa de tal monta, que rejeita meros propósitos e exige uma reformulação da
mentalidade do europeu. Hoje, não há lugar para dúvidas: muitas dessas obras
estão condenadas ao esquecimento, salvando-se aquelas que, apesar de
prejudicadas pelas contigências de uma época e de uma mentalidade coloniais,
evidenciam contudo um certo esforço humanístico e uma real qualidade estética.
Mas, no conjunto, a história vai ser de uma severidade implacável e arrumará a
quase totalidade desta literatura no discurso da acção colonizadora ou no
nacionalismo imperial, saudosista e deslumbrado.
Século
XIX ― Sentimento Nacional
Angola
É interessante notar,
porém, que já na segunda metade do século XIX, paralelamente a uma literatura colonial,
surgem textos de alguns escritores que não poderão ser genericamente
catalogados de autores de literatura colonial. Se, por um lado, na
representação do universo africano lhes falece uma perspectiva real e coerente,
por outro enjeitam a exaltação do homem branco, embora possam, como é natural
no contexto da época, não assumir uma atitude de oposição, típica daquilo que
viria a ser a autêntica literatura africana de expressão portuguesa. Mas
irrealista seria exigir isso de homens que viveram num período em que a institucionalização
do regime colonial dificultava uma consciência anti-colonialista ou outra
atitude que não fosse a de aceitá-la como consequência fatal da história. Manifestar
nessa época recuada um sentimento africano ou uma sensibilidade voltada já para
os dados do mundo africano constitui hoje, a nossos olhos, um acto de novidade
e de pioneirismo. Eles são, com efeito, e neste quadro, os antecessores de uma
negritude ou de uma africanidade.
O mais remoto desses
escritores, em Angola, é José da Silva Maia Ferreira, africano
de nascimento e de cor. O seu livro de poemas Espontaneidades da minha alma (1849)
marca assim o início da literatura angolana de língua portuguesa. Tessitura poética frágil, é certo, mas
que cumpre mesmo assim mencioná-lo, até porque de, um modo geral, a poesia
angolana desse século acusa toda ela um certo rudimentarismo. A tónica deste
discurso é o lirismo vasado sobretudo
no amor, mas também na fraternidade, na gratidão, na recordação familiar, na amizade,
no enlevo rústico ou paisagístico. E neste campo semântico variado e não muito
complexo nem profundo, palpita ainda, e isto é importante, a ternura romântica
de um sentimento pátrio:
Foi ali que por voz
suave e santa
Ouvi e cri em Deos! É
minha pátria!
José
da Silva Maia Ferreira no poema A minha terra, datado do Rio de
Janeiro (1849).
In Manuel Ferreira, Literaturas
Africanas de Expressão Portuguesa, Instituto de Cultura Portuguesa,
Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria
Bertrand, 1977.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT