«Seguem-nos, num cortejo desordenado, fidalgos, monteiros, escudeiros,
pajens e os cães favoritos que se espalham, pulam e correm por toda a parte, a
latir, farejando, colhendo cheiros que lhes são pouco habituais. A sala
enche-se de movimentos e ruídos. Os olhos de Pedro estão febris, o suor cobre-lhe o rosto. Mas não pára junto da
mesa onde os moços-de-câmara deixaram o vinho e a fruta. Mal entra na sala, vai
em passos apressados até junto dos seus conselheiros, que se curvaram. - Então,
chegaram? São bem eles? João Afonso endireita-se. Ao falar, modula a voz
para a tornar grave, tranquila, na esperança de que essa tranquilidade possa
contagiar o Rei. - São eles, senhor.
Pedro deixa escapar um
suspiro que é satisfação e uma espécie de felicidade feroz. Só então se dirige
para a mesa e serve-se de vinho. Bebe dois goles sôfregos, mas de repente uma
derradeira dúvida leva-o a baixar a taça. - Os três? Dizeis bem que são os
três? E João Afonso, com a mesma tranquilidade deliberada: - Álvaro
Gonçalves e Pero Coelho são chegados, senhor, e bem guardados na
masmorra... Pedro interrompe-o: - Esses dois, só esses dois? E Diogo Lopes
Pacheco? - Temos recado - prossegue o mordomo-mor - de el-rei de Castela. Diogo
Lopes conseguiu fugir à gente que ia por ele e passou a Aragão e depois
foi-se a França.
A taça voa da mão de Pedro,
o vinho espalha-se em redor, a taça tomba e rola nas lajes do chão enquanto os
presentes recuam. Todos menos João Afonso e Álvaro Pais. O chanceler,
que intuiu a vontade de João Afonso, usa o mesmo tom repousado e grave
para dizer: - Senhor, sofra vossa mercê que lhe diga, Diogo Lopes não teve culpas na morte de D. Inês, antes
porfiou por… - Culpas, sei eu quem as tem e Diogo Lopes é o mais principal!
A fúria faz cambalear o Rei, que começa a andar pela sala ao acaso, como
procurando um lugar onde o ar seja mais puro e possa respirar melhor, enquanto
um escudeiro, com movimentos discretos, para não ser notado, recolhe a taça de
prata e a coloca sobre a mesa. - Traição, traição! - rosna Pedro, continuando a
vaguear pela sala. - Eu cumpri a minha avença com el-rei de Castela. Entreguei-lhe
Pedro de Gusmão e Mem Rodrigues Tenório e Fernão Godiel de Toledo e Fernão
Sanches Calderon. E ele me deixa fugir Diogo Lopes… Então, Álvaro Pais
ouve a sua própria voz, como se fosse a voz de um estranho, dizer, sem que
antes o pensasse conscientemente: - Assim é, senhor. Esses que dizeis, vós os
entregastes a el-rei de Castela, depois de lhes haverdes dado acoutamento e
segurança em vossos reinos.
Cai um silêncio feito de incredulidade e de medo. Ninguém, a não ser o
chanceler-mo, ousaria dizer tal coisa ao Rei, lançar-lhe em rosto a quebra da
palavra dada. Mesmo na sua boca, porém, aquela frase soa, cheira a perigo. João
Afonso domina um arrepio. Olha fixamente Álvaro Pais, tentando transmitir-lhe
uma mensagem de alerta: calar, calar, já foi dito o que ele não quer ouvir. Mas
o outro mantém os olhos postos em Pedro. E Pedro não responde. Estende o braço.
Afonso Madeira, que lhe adivinhou a vontade, traz-lhe a taça novamente cheia.
.- Deixai-me só. Os monteiros chamam os cães. Num tumulto que todos se
esforçam por moderar, a sala esvazia-se rapidamente enquanto Pedro acrescenta
no mesmo tom duro que usou: - João Afonso, mandai que tragam aqui Pero Coelho e
Álvares Gonçalves. Afonso Madeira, vós ficareis e tangereis para mim». In
João Aguiar, Inês de Portugal, pequenos Prazeres, Edições ASA, 1997, ISBN
972-41-1822-3.
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