Renascença e Águia
«Perante o amor da República, e perante o fracasso da mudança do
regime, alguns intelectuais de formação diversa, mas todos profundamente
vinculados a uma herança rural, acharam necessário fazer a revolução, mas onde
ser feita, do lado do avesso, pela educação nacional. Renascença significa-se
aí, no substantivo e no prefixo que a demonstram, nascer de novo. Não é andar para trás; é iniciar de novo a
marcha, para se obter melhor efeito. A Renascença surge com vista a
implantar a alma portuguesa na
terra portuguesa, de forma a que Portugal exista como Pátria. O projecto passa
pela revelação da alma lusitana, que deveria ser integrada nas suas realidades
essenciais. De acordo com os Estatutos, visava promover a maior cultura do povo
através dos meios disponíveis, com o fito de dar conteúdo renovador e fecundo à revolução republicana.
O grupo fundador admitia que a República carecia de conteúdo renovador
e fecundo. Ele tinha de soprar do lado de fora, ou dentro da própria República.
Era este o pensamento que, pondo a tónica em dois vectores, Educação/República,
veio a ocupar uma revistazinha fundada por Álvaro Pinto em 1910, na capital do Norte, titulada A Águia
(1.ª série, 1910-1911), fortemente
inspirada na influência racionalista e jacobina dos pensadores portuenses,
quais Sampaio Bruno e Basílio Telles. A Águia não tinha, porém,
um programa de vida, o qual lhe veio a ser dado pelo grupo da Renascença
Portuguesa, em 1912. Esse
programa, guardado nos limites, expandiu-se ao longo da existência da revista
(2.ª série, 1912-1921, com a
direcção de Pascoaes; 3.ª série, 1922-1927
, 4ª série, 1928-1931, 5ª série, 1932, com direcções colegiais, de que
participaram Leonardo Coimbra, Teixeira Rego, Hernâni Cidade, e
outros).
Que primado, aí, o da política, ou o da educação? A resposta está na
emblemática. Na emblemática da revista A Águia, tornada órgão da Renascença
Portuguesa que também publicaria, a partir de 1912, o quinzenário Vida Portuguesa, para maiores
camadas de leitores, surge um globo terrestre, com terras e águas. E, os pés
assentes na terra, a Águia, de asas abertas, olhos fitos
no espaço, prepara-se para levantar voo. Na sua frente, o espaço infinito, o
céu. De pés fincados na terra, a água mede a distância para o céu. É o símbolo
do homem novo, símbolo esse que se explica em Pascoaes:
- No Princípio era a Esperança. O seu voo, através dum espaço ideal, vai-se corporizando em lembrança, ao longo do espaço concreto. O Espírito e a Matéria são as duas faces do Enigma; a natureza inicial, diabólica, e a natureza divina e final. Transmutar o demoníaco em divino, eis o nosso ideal, que consiste, no campo patriótico, em elevar o criador animal e individual a criatura espiritual.
O esquema de ideias está ai: Renascença = Transmutação,
Metamorfose, Transformação, pelo que nunca será de mais assinalar o
evolucionismo transformista que orientou pensadores renascentistas como Pascoaes,
Leonardo
e Teixeira Rego, cada um dentro da sua visão religiosa. O diagrama
ideológico faz entender o motivo porque, às grandes figuras políticas, a Renascença
preferiu as figuras dos santos, e porque motivo, entre as figuras dos santos,
privilegiou São Francisco, São Paulo, Santo Agostinho e, no topo, Jesus, conforme
consta das escrituras de Leonardo Coimbra e de Pascoaes.
O pressuposto pascoalino da Esperança tem analogia na imagística de Leonardo:
- É a alma na tentativa de voo e no assombro das alturas. Ah! Mas agora é heróica, alegre e confiada a minha alma. Os céus brilham as possibilidades sem fim da vida criadora, e, no silêncio maternal da noite, eu bem vejo germinar o ideal, bem vejo a, infinita sementeira de sonho, que enche o Espaço.
A águia é o homem que, vendo como ainda não atingiu a sua humanidade,
inicia um voo para ela. O verbo Ser e o verbo Amar. Uma segunda
advertência consta. A Águia apresenta-se como revista
de literatura, arte, ciência, filosofia, crítica social. Vejamos a
gradação:
- em primeiro lugar, põe as artes imagísticas, literatura e arte;
- em segundo, lugar, as ciências fenomenológicas ciência;
- em terceiro lugar, a arte especulativa e do conhecimento, filosofia;
- e, por fim, a crítica social.
A escada vai das artes para a religião, com passagem pelo concreto da
ciência e pelo teórico da filosofia. Crítica social significa, neste contexto
ordinal, não a análise da conjuntura política, mas o preenchimento da sociedade
em crise pelos valores apurados nos saberes anteriores da enumeração: literatura,
arte, ciência e filosofia. Com estas quatro disciplinas fica instaurada a
crítica social, ou seja, o, crescimento da sociedade, pela transmutação dos
valores, pela renascença da sua alma. Os saberes são ancilares da felicidade.
Outra leitura que não esta descapitalizaria o espírito da Renascença portuguesa. O
primado aguilista jâ se vê, nesse caso, e sem outra declaração, qual seja. Vem
nas definições de Leonardo, que deu o teor criacionista à dinâmica do plano
inclinado de Pascoaes. Enquanto a arte procura dar permanência e eternidade
às efémeras formas de pensamento superior, a
religião é o êxtase e o entusiasmo dos grandes ramos, marulhando, enleados, na
imensidade em que e para que se agitam». In Pinharanda Gomes, A Teologia
de Leonardo Coimbra, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa,
1985.
Cortesia de Guimarães Edt./JDACT