« - E, durante alguns minutos, cantou as excelências do tabaco e a
conveniência de o usar. A seguir, continuou ' - Não deixa de ser curioso,
Excelência, e digno de ter em consideração, o facto de que esta manhã, com as
primeiras luzes da aurora, um formidável dragão, de pelo menos sete cabeças,
mas possivelmente de mais, tenha abraçado as fundações da alcáçova com o propósito
de a destruir, segundo declarações de testemunhas que o viram, e como já sabe
toda a gente na cidade. De outros prodígios também se fala, embora não de tanta
monta. O meu confidente Satanás, que me conta muitas coisas, mas não todas as
que maquina, como é óbvio, costuma adoptar a figura de dragão multicéfalo
quando quer ser especialmente notado, já que um bicho dessa natureza, que se
saiba, não o criou o Senhor.
- O que a mim me interessa,
padre Rivadesella, é essa outra metamorfose, que me parece menos lógica ou, pelo
menos, inadequada ao caso. Segundo o relatório que acabais de ler, de todas as
figuras de bruxas e de bruxos que pulularam esta última noite pelo céu da
cidade, uma era mais bela do que as restantes, tinha sexo de varão e, ao
deslizar pelos ares, deixava um rasto de prata. Segundo o meu entendimento,
mais parece figura de anjo, e não dos menores. - Não podemos esquecer-nos de
que o maior de todos eles foi Lúcifer, e que entre os seus atributos está o da
beleza.
- A si apresenta-se-lhe assim,
como um formoso mancebo? - Para comparecer aos seus encontros com este humilde
servidor de Deus, Satanás costuma escolher figuras mais modestas. A mais nobre
delas é a de um fidalgo entrado em anos, com um bigode muito erecto; na outra ponta
da escala estão o cão ou o passarinho que se instalam no meu regaço e falam
comigo por sinais. Entre cavalheiro e pássaro, tudo o que Vossa Excelência se
digne imaginar. - E como sabe Vossa Paternidade que é o Diabo? - Temos as
nossas contra-senhas, e ele explicou-me que adopta uma forma ou outra por
prudência e para não me comprometer. Não se esqueça Vossa Excelência de que as
minhas relações com o Maligno, embora sejam conhecidas dos meus superiores
hierárquicos e das autoridades competentes, até chegar a Roma, são ignoradas
pelos frades do meu convento, apesar de algum vivaço suspeitar delas. Do mesmo
modo, Satanás oculta aos seus sequazes as suas relações comigo. Por alguma
razão, ontem, não só não veio, como me ocultou a sua intenção de concentrar, no
céu da cidade, essa gentalha que o serve.
- Gente belíssima também,
segundo diz o relatório, e dada a toda a espécie de fornicações. - Será que
Vossa Excelência esperava outra coisa de semelhantes pessoas? - Esperava que,
pelo menos, para o fazerem, tivessem que se deitar. Mas, como Vossa Paternidade
leu, faziam-no mesmo no ar, sem perderem o equilíbrio, e dando cambalhotas. Padre
Rivadesella, o Diabo trata tão bem os seus amigos que não me espanta que os
tenha. A Vossa Paternidade, faz-lhe algum favor? O padre Rivadesella ficou um
momento pensativo. - Sim, Excelência, mas gratis
et amore, ou pelo menos assim parece. Eu creio que precisa de desabafar com
alguém das suas preocupações, e escolheu-me a mim. - Pela sua discrição, se
calhar? - Poderia ser por isso...
E foi nesse mesmo momento que entrou um fâmulo, que se aproximou
silenciosamente do Inquisidor-mor e lhe falou ao ouvido. Sua Excelência
respondeu-lhe: - Está bem, que entre. Depois dirigiu-se ao franciscano. - Não
terá Vossa Paternidade nenhum inconveniente em conviver embora apenas por
alguns minutos, com um frade capuchinho? - Na presença de tão alto magistrado,
as rivalidades adiam-se. - É. o padre Villaescusa. - Ah, o capelão-mor do
palácio! Belo figurão. - De belo não tem nada, padre Rivadesella, pelo
contrário, que nessa matéria não deve muito à bondade do Senhor. Quanto a
figurão, em contrapartida, estou de acordo. O fâmulo mantinha aberta a grande
porta com guarnições de bronze e figuras pagãs na decoração, apesar de castas.
O padre Villaescusa entrou, fazendo reverências cortesãs.
- Que o Senhor acompanhe Vossa
Excelência e lhe dê longos anos de vida! - Levou a mão ao nariz. - Também aqui
chegou esse fedor do inferno? Refiro-me, como é óbvio, a esse cheiro sulfuroso
que penetrou na cidade e que nos tem a todos alarmados. - Pois o meu nariz não
deu, até agora, por semelhante pestilência». In Gonzalo Torrente Ballester,
Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre,
mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.
Cortesia da E. Caminho/JDACT