quinta-feira, 11 de abril de 2013

O Sábio Imortal. Sócrates. Miguel Betanzos. «Ainda assim conseguiu retirar forças do seu próprio atordoamento. - Já chega! Já chega por favor! - Irrompeu quase engasgado pelas próprias palavras. - Calem-se, senhores, que agora sim é a vez de Aristófanes!»

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«Uma nova perturbação impediu Erixímaco de continuar com o seu discurso, mas desta vez não foi um guincho ou inalação, mas o profundo e atento silêncio com que todos observavam Aristófanes, o interesse com que seguiam os seus movimentos, com que espiavam quase enfeitiçados aquele jovem que parecia cada vez mais incomodado e irritado com o ataque de soluços. Pelo que se via, o rosto tinha começado a ruborizar-se, a tornar-se numa estranha cor púrpura, e dado que o remédio dos gargarejos fracassou, agora empenhava-se em achar alguma pluma, ou pau, algo que lhe provocasse cócegas no nariz para se livrar de uma vez por todas daquele fastidioso aborrecimento.
Erixímaco levantou a voz com visível exasperação. - Dizia que a medicina é harmonia - observou quase a gritar perante os amigos - e a harmonia não é mais do que a concordância entre os elementos opostos. Por conseguinte, o amor deve estar presente para animar a concórdia e conseguir que... Um profundo, sonoro e grotesco espirro veio mais uma vez interromper o discurso do médico, e durante alguns instantes emudeceu não só o orador como um flautista que ensaiava o seu instrumento e os escravos que cochichavam na sala ao lado. Todos emudeceram de repente, todos ficaram rígidos perante o estrondoso bramido, com as bocas abertas de admiração, os copos parados no ar da sala que também pareceu aquietar-se, e enquanto os olhares de todos se concentravam na figura de Aristófanes, agora por fim liberto dos soluços, podia pensar se que aquela cena imóvel, parada no tempo, duraria para sempre, para toda a eternidade, poderia pensar-se que toda a gente ficara petrificada com o escandaloso espirro do poeta, mas bastou a subtil insinuação de um sorriso para que de repente explodisse uma infinita sucessão de gargalhadas, de risos hilariantes, eufóricos, uma sucessão de risos desenfreados e ainda mais profundos, ainda mais sonoros, ainda mais burlescos do que o próprio espirro de Aristófanes, que não teve outro remédio senão juntar-se à algazarra com as suas próprias risotas. No meio da confusão, o jovem Fedro olhou para Erixímaco, e enquanto se agarrava à barriga do riso aconselhou-o: - É melhor interromperes o discurso, meu amigo. Está visto que os deuses não querem que fales.

Os calores aumentavam cada vez mais, acendendo o ânimo dos convidados, e aos ardores do corpo somavam-se os ardores do espírito. O dono da casa, entretanto, procurava acalmar toda a gente com trejeitos desesperados, mas ele próprio estava tão ébrio, tão visivelmente enjoado pela bebida, que falava aos tropeções e quase não conseguia fazer-se entender, e apesar de uma ou outra vez se esforçar por manter a serenidade, por conter o riso desenfreado, o seu riso pomposo e sonante, apesar de tentar esconder o rosto debaixo da mangada túnica, a impressionante figura daquele homem parecia a de um sátiro mergulhado na mais absoluta embriaguez.
Ainda assim conseguiu retirar forças do seu próprio atordoamento. - Já chega! Já chega por favor! - Irrompeu quase engasgado pelas próprias palavras. - Calem-se, senhores, que agora sim é a vez de Aristófanes! Mas de nada serviram os gritos no meio da confusão geral, porque nesse preciso momento entrou um escravo na sala com dois jarros de vinho cheios até à borda, entrou sem suspeitar que a sua presença avivaria o desvario, e bastou que alguém o descobrisse para que toda a gente se empenhasse em lhe estender o copo e alcançar aquelas fontes prodigiosas, aqueles rios de néctar que trazia debaixo do braço.
Imediatamente, um enxame de mãos suplicantes e luxuriosas atirou-se avidamente, desordenadamente, com indizível desespero para recolher mais e mais daquele vinho que transbordava dos jarros e caía em torrentes entre os convidados. E foi então que Pausânias, longe do escravo e desejoso de recolher um pouco daquela bebida, receoso de que o divino manancial se esgotasse à frente do seu nariz, se pôs de pé num tremendo e sufocante esforço e tentou aproximar-se do escravo, pesadamente, com um torpor de animal selvagem, tão obcecado pelo seu propósito, tão cego e surdo, tão apressado em alcançar o rapaz, que bastou um ligeiro tropeção na alcatifa para que toda a sua monstruosa humanidade desabasse por terra de forma estrondosa. De nada serviu o esforço de Ágaton, que esticou os braços e agarrou Pausânias por uma ponta da túnica: o tecido escapou-lhe das mãos e o obeso convidado caiu com um estrondo de pratos, copos e tigelas». In Miguel Betanzos, Sócrates, O Sábio Imortal, Editorial Sudamericana, 2005, Ésquilo, Lisboa, 2006, ISBN 972-8605-93-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT