Sebastião Josc. 1 de Dezembro de
1965
« E apontou para o grande pórtico que se erguia, isolado, no meio das
paredes enegrecidas e arruinadas. - No entanto, não tinham direito de o fazer. Pabanel,
nessa época, não pensava em fazer-se padre, nem tu calculavas vir a ser maire. - Já te contei esta história mais
de vinte vezes... Meteu-se-te na cabeça que te oculto qualquer coisa! Não há
nada a esconder; estávamos todos loucos, e pronto. - Tu és chato, Manuel -
interveio Baptista, arrotando depois de ter bebido uma boa golada de vinho. -
Chato como a mosca dos bois. - Trabalha, grande madraço - disse Manuel. -
Substitui Fontugne. - Sou doente do coração, não posso fazer esforços.
Baptista pesava mais de cento e trinta quilos. Em 1943 conseguira fugir, porque era magro, ágil e corria bem. Hoje,
se dava três passos, resfolegava como uma foca. Em vez de bochechas tinha duas nádegas
e três roscas de gordura que ligavam o queixo ao peito. - Há uns bons dez anos
que não consigo ver-me mij.. - dizia com satisfação. Várias vezes, Sebastião,
que o tratava, tentara impor-lhe regímen,
ameaçando-o com a possibilidade de uma crise cardíaca. Mas este gorducho
sentia-se possuído do desejo de se destruir e tinha necessidade de encher o
bandulho de comida, para acalmar a sua ansiedade doentia. Depois da guerra, instalara-se
sobre três anos de recordações gloriosas, como se se sentasse em cima de um
monte de esterco. Com essas lembranças começara a apodrecer, sem mais nada
realizar.
Por duas vezes Baptista fora à estalagem buscar vinho. Já estaria embriagado,
para ter aquela ideia de levar a bandeira dos antigos combatentes. Com a cabeça
oculta no capucho de 1ã que lhe cobria o rosto e donde se escapavam alguns pelos
brancos do bigode, Fontugne batia- com a picareta dando suspiros demasiado
profundos. Os pastores muitas vezes só são taciturnos por não terem ocasião de
falar, ou não saberem como fazê-lo. Sebastião compreendeu que havia qualquer
coisa que o afligia: - O que é, Marcelo? O pastor pousou a picareta e
respondeu: - Doutor... O coronel deveria ser, naturalmente, enterrado no
cemitério junto da igreja, e não no meio dos campos como um huguenote. O velho
Puech disse muitas vezes que era do outro lado.
Baptista bateu nas coxas e exclamou: - Marcelo, tu ainda não percebeste
nada. Enterra-se o coronel ao lado de Natália, que era calvinista, porque ele
nos pediu, foi mesmo por isso que ele voltou. Depois, estamo-nos nas tintas para
autorizações, histórias do padre, do cura, e tudo o resto. Estamos em
Salvaterra... Sabes o que quer dizer Salvaterra? Que não têm o direito de nos vir
aqui chatear com essas trampas com que agora se preocupam. Sebastião
aproximou-se da campa vizinha, abriu a cancela e com a palma da mão limpou a
neve que cobria a pedra:
NATÁLIA PUECH
Julho, 1920 - Janeiro 1944
Dentro de uma hora tudo estaria consumado e, por fim, reunir-se-iam os
que a morte separara e a vida de igual forma também havia afastado. Natália e
Lourenço nunca poderiam viver juntos. Mal se acabara de abrir a cova, quando ao
longe se ouviu o sino da igreja. Mas, como o vento espalhava metade do som, não
se percebia se dobrava a finados, se tocava as ave-marias ou se chamava os
fiéis para a missa. Do outeiro, Sebastião descobria o enorme planalto, onde
pedras acinzentadas e alguns arbustos baixos sobressaíam na neve. Próximo dos
quatro caminhos de Bartuel, alguns freixos sem folhas estendiam os cotos
negros. Recordou-se do velho Puech, com os olhos enterrados nas órbitas, os
gestos desordenados, lançando-lhes maldições, quando, inclinados sobre um mapa,
se esforçavam, com Lourenço, a pôr nos seus lugares os poucos e miseráveis
grupos de guerrilheiros que tamanha dificuldade tinham em recrutar.
Puech citava o Eclesiastes:
- Quem abre uma campa nela cairá, quem arrasa um muro será mordido pela serpente, quem arranca pedras ferir-se-á…
Erguendo a cabeça, Sebastião vira que Natália pusera a mão no ombro de
Lourenço, e compreendeu, que já se amavam, quando parecia que ainda se
detestavam. Vindos do extremo do horizonte, pequenos grupos de homens e mulheres
dirigiam-se para a herdade queimada e para o monumento. Em contraste com a neve
não passavam ainda de pequenos pontos mais negros que os pedregulhos e os arbustos.
Às vezes, um homem ou uma mulher, segurando o chapéu com as mãos, voltava-se de
costas para poder tomar o fôlego que o vento lhe cortava. Alguns tinham feito
dezenas de quilómetros a pé, outros, vindos de carro, reuniam-se em frente da
estalagem. Mas ninguém se atrevia a entrar». In Jean Lartéguy, Sauveterre,
Press de la Cité, 1966, Salvaterra, Livraria Bertrand, Lisboa.
Cortesia de L. Bertrand/JDACT