domingo, 28 de abril de 2013

Crónica Esquecida d’el rei João II. Leituras. Seomara Veiga Ferreira. «Afonso não quis nunca, sozinho medir armas com o irmão. Teria de ser o irmão contra o rei e a nobreza em volta do rei nem que para isso tivesse de vender a alma ao Diabo. ‘E vendeu-a’»

jdact

A Morte do Cisne no Campo do Leão
«(…) O duque de Bragança que, entretanto, se transferira para Chaves, depois de ter recebido notícias através do filho e do cunhado que tinham pressionado o Rei a correr com o tio e sogro, reuniu os seus homens e desceu do Norte, do Marão, do Minho, até Guimarães, depois de andar mais acima a arrebanhar a sua gente de guerra, e veio até ao Porto. Retirou aos servidores do irmão os ofícios que tinham em nome do Rei, expulsou-os, chamou-lhes traidores e preparou-se para roldar as fortalezas contra o irmão Pedro. O infante Pedro vivia em Santarém no mês de Julho de 1448, onde estava a Corte e o Rei e assistiu a tudo, inclusive ver o primo, o douto Ourém, que nunca lhe perdoou não ser condestável, acampar em Torres Novas em quartel-general. Que se passava? De novo o espectro da guerra civil?
Depois o Ourém colocou ao lado do Rei um confidente de baixa extracção, o tal Berredo, que lhe deu literalmente volta à cabeça. É engraçado. O Afonso, conheci-o bem. Foi um dos mais santos e honestos homens que passaram pela minha vida, mas o mais fraco também. Tal como mais tarde o próprio filho, o único que lhe sobreviveu dos machos, o viu sempre, como uma criança grande, um homem que engorda e fica calvo com a idade, mas continuou puro, inocente, menino. Foi essa pureza, essa confiança pueril que o matou de desgosto, lhe envenenou o Reino e permitiu que o tio fosse assassinado em Alfarrobeira. Há homens assim, para quem as qualidades morais podem gerar mais mal que os seus naturais e humanos defeitos e que o mal na sua essência mais pura também.
O conde de Ourém e seus apaniguados convenceram o Rei de que o infante Pedro era um rebelde, desejava para si o trono e para seus filhos, que envenenara o rei Duarte, D. Leonor e não parava perante qualquer obstáculo. Se Afonso era o Rei, então que governasse! Em Dezembro de 1448 o Rei, por Carta Régia, impõe a seus tios um juramento de concórdia e que jurem por sua honra. As posições extremaram-se, endureceram, de parte a parte. Claro que, do ponto de vista legal, não se justificava que o Rei, maior, casado, não exercesse o poder, embora até a intriga o indispor contra o tio, ele não tivesse tomado qualquer atitude em contrário. Por outro lado, Afonso de Barcelos continuava um homem da sua época, preso aos preconceitos e políticas do pai, do século devoluto, inclusive o que se concluíra sob a forma de tratados com Castela e não aceitava a orientação da política interna e externa do Regente.
Afirmou sempre que o moveu, perto dos seus oitenta anos, ainda a inteira obediência e a lealdade a el-Rei. Não duvidamos, mas cevara também os seus ódios, apesar do seu patriotismo que nem Pedro alguma vez pôs em causa. Afonso V chamou à Corte o duque de Bragança. O duque obedece e vem até à Corte por meados de Março de 1449 mas com séries dificuldades, pois teria de passar pelas terras do irmão. Pedro não estava pelos ajustes. Quando o duque, antes de passar a ponte de Bobadela, tentava decidir se tornava o caminho da serra da Lousã ou o da antiga estrada que os romanos construíram e que, como muitas outras, ainda nos serve de passagem, recebeu um correio do irmão. Queria saber quais as suas intenções e o que tencionava concretizar.
A estrada romana atravessa a serra da Estrela e o caminho é difícil. Sempre o foi. Ao duque conviria mais seguir por Valezim, Loriga, Alvoco, Unhais, Tortosendo, Covilhã, Zêzere e Alcaria. Ora o duque percebeu. Se passasse pelas terras do ducado de Coimbra, conhecendo Pedro as suas intenções e o que efectivamente pretendia com a vinda tão atempada à Corte, o irmão fazer-lhe-ia frente. O duque, raposa velha, ainda o não desejava. Era cedo. Afonso não quis nunca, sozinho medir armas com o irmão. Teria de ser o irmão contra o rei e a nobreza em volta do rei nem que para isso tivesse de vender a alma ao Diabo. E vendeu-a». In Seomara Luzia da Veiga Ferreira, Crónica Esquecida d’el rei João II, Editorial Presença, Lisboa 1995, 4ª edição, Lisboa 2002, ISBN 972-23-1942-6.

Cortesia de Editorial Presença/JDACT