quinta-feira, 11 de abril de 2013

A Rosa dos Ventos. Materiais para uma Opereta sem Música. Gonzalo Torrente. «Pois a história que inclui (breve) justifica, simultaneamente, do ponto de vista literário, único válido aqui, a publicação de um manuscrito e, ao mesmo tempo, completa alguns dos acontecimentos que nele se narram…»


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Justificação
«Ignoro se me perdoarão, se me tolerarão sequer, a publicação, de dois manuscritos encontrados, por muito diferentes que tenham sido as circunstâncias do seu achamento ou da sua chegada às minhas mãos, por muito diferentes que sejam os seus materiais. Não estou, contudo, muito seguro de que a minha consciência necessite de perdão ou de tolerância, pois tenho observado nela, nestes últimos tempos, uma certa tendência suspeita para agir por sua conta e risco que deveria causar-me preocupação ou, pelo menos, um mínimo de inquietação; mas, como uma e outra são, por sua vez, coisas da consciência e foi esta que se proclamou autónoma, a verdade é que me encontro absolutamente mergulhado em indiferença. Isto não me exime de redigir e de inserir, precisamente aqui, aquilo a que chamei justificação e a que deveria ter chamado, igualmente, complemento, pois a história que inclui (breve) justifica, simultaneamente, do ponto de vista literário, único válido aqui, a publicação de um manuscrito e, ao mesmo tempo, completa alguns dos acontecimentos que nele se narram e que podem deixar, no espírito, a interrogação, a dúvida ou a, insapiência. E isto, por se tratar de uma história de amor, é grave. A única coisa que, na literatura como na vida, exige um remate cabal, são as histórias de amor. Vou direito ao assunto pois, com licença ou sem ela, vem a dar no mesmo.
É, se não provável, pelo menos possível, que alguém se recorde da pessoa e do nome de Anníbal Mario Mkdonald de Torres Gago Coutinho Pinto da Câmara da Rainha, um velho amigo meu que, com o seu nome e a sua figura passou a uma das minhas narrativas. Como não lhe pareceu mal e até se congratulou com o facto de eu ter feito tão bom uso do seu nome e da sua pessoa, continuamos amigos, e satisfeitos. Mas começou a sentir-se velho, que é o pior que nos pode acontecer quando realmente o estamos e adivinhamos a precaridade da taça de vida que verdadeiramente nos resta, por muito grande que seja o optimismo. Dom Anníbal, talvez por ter gozado do bom, via sem grandes cuidados a proximidade do seu fim, que chegou tranquilamente, sem dores aparatosas sem mais do que um ligeiro mal-estar que começou numa tarde de Outono, à hora do crepúsculo, doce e húmida, e levou Dom Mario por volta da madrugada. Ele apercebeu-se do que lhe acontecia, e recebeu a morte como os santos e os filósofos.
Algum tempo antes, tinha-me legado uns quantos canhenhos, bem ordenados e etiquetados. São coisas minhas e você fará, com elas o que entender. Mas este não é coisa minha (referia-se ao manuscrito que guardava) e por isso vou-lhe contar uma coisa. Estava já em minha casa, dentro dessas mesmas cartolinas, quando eu era criança e proibiram a sua leitura às minhas irmãs que foram, por isso, quem mais o leu e quem me relatou a história, antes que eu estivesse em situação de a ler. Não a entendia bem; mas, quando a li já homem feito, entendi. Chamavam-lhe O Manuscrito da Princesa apesar de, como vê, ter, em inglês, o título incompreensível de A Rosa dos Ventos. Recordo vagamente a princesa a quem pertenceu: uma anciã, de ar majestoso, muito distinta que, numa quinta do Norte de Portugal, próxima da de meus pais, se dedicava ao cultivo de camélias, flor da qual obtinha, segundo ouvi dizer muitas vezes, exemplares estranhos e maravilhosos, mediante cruzamentos de sementes e outras operações que, então, só lhe ocorriam a ela. Morreu em consequência de uma queda: tinha subido a uma escada de mão e podava as suas árvores. Escorregou, esmigalhou os ossos, e a vida abandonou-a, passados poucos dias.
Foi uma complicação enterrá-la, porque não era católica e por causa de certa reputação de que já lhe falarei. Mandaram-se telegramas para Lisboa e de lá se ordenou o seu embalsamamento, veio um dia alguém com poder, meteram o féretro no comboio e disse-se que a tinham trasladado para a terra dela, num país setentrional, onde a teriam enterrado num canto de uma catedral luterana. Deus a tenha na sua glória. Pois a reputação de que lhe falei vinha-lhe do facto de, uns anos antes, não viver só, mas sim com um cavalheiro bastante mais velho do que ela, aí uns trinta anos, também de grande distinção, a quem chamavam o rei, nunca se soube porquê, talvez pela elegância de destronado digno que tinha. Uns diziam que era o pai da princesa; outros, que era o amante e, alguns, que era ambas as coisas: daí o terrível dos boatos; algumas pessoas chamavam àquela quinta das camélias A quinta do pecado, e continuam a chamar-lhe assim. A única coisa certa e que a Corte de Lisboa os protegia e provavelmente os sustentava, não se sabe se como reis no exílio e que, quando ele morreu, o levaram também, embalsamado, para, um lugar longínquo qualquer. Por ela, solitária, passaram anos e guerras, bem como algumas revoluções. Nunca lhe aconteceu nada porque, apesar da lenda, era boa para as pessoas e as pessoas amavam-na. Vivia, com modéstia, das suas flores, com a altivez de um passado que ninguém conhecia no porte e na conduta com os grandes». In Gonzalo Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.

continua
Cortesia de Difel/JDACT