Justificação
«Ignoro se me perdoarão, se me tolerarão sequer, a publicação, de dois manuscritos encontrados, por
muito diferentes que tenham sido as circunstâncias do seu achamento ou da sua
chegada às minhas mãos, por muito diferentes que sejam os seus materiais. Não
estou, contudo, muito seguro de que a minha consciência necessite de perdão ou
de tolerância, pois tenho observado nela, nestes últimos tempos, uma certa
tendência suspeita para agir por sua conta e risco que deveria causar-me
preocupação ou, pelo menos, um mínimo de inquietação; mas, como uma e outra
são, por sua vez, coisas da consciência e foi esta que se proclamou autónoma, a
verdade é que me encontro absolutamente mergulhado em indiferença. Isto não me
exime de redigir e de inserir, precisamente aqui, aquilo a que chamei justificação
e a que deveria ter chamado, igualmente, complemento,
pois a história que inclui (breve) justifica, simultaneamente, do ponto de
vista literário, único válido aqui, a publicação de um manuscrito e, ao mesmo
tempo, completa alguns dos acontecimentos que nele se narram e que podem
deixar, no espírito, a interrogação, a dúvida ou a, insapiência. E isto, por se
tratar de uma história de amor, é grave. A única coisa que, na literatura como
na vida, exige um remate cabal, são as histórias de amor. Vou direito ao assunto
pois, com licença ou sem ela, vem a dar no mesmo.
É, se não provável, pelo menos possível, que alguém se recorde da
pessoa e do nome de Anníbal Mario Mkdonald de Torres Gago Coutinho Pinto da Câmara
da Rainha, um velho amigo meu que, com o seu nome e a sua figura passou a uma
das minhas narrativas. Como não lhe pareceu mal e até se congratulou com o
facto de eu ter feito tão bom uso do seu nome e da sua pessoa, continuamos
amigos, e satisfeitos. Mas começou a sentir-se velho, que é o pior que nos pode
acontecer quando realmente o estamos e adivinhamos a precaridade da taça de vida
que verdadeiramente nos resta, por muito grande que seja o optimismo. Dom
Anníbal, talvez por ter gozado do bom, via sem grandes cuidados a proximidade
do seu fim, que chegou tranquilamente, sem dores aparatosas sem mais do que um
ligeiro mal-estar que começou numa tarde de Outono, à hora do crepúsculo, doce
e húmida, e levou Dom Mario por volta da madrugada. Ele apercebeu-se do que lhe
acontecia, e recebeu a morte como os santos e os filósofos.
Algum tempo antes, tinha-me legado uns quantos canhenhos, bem ordenados
e etiquetados. São coisas minhas e você fará, com elas o que entender. Mas este
não é coisa minha (referia-se ao manuscrito que guardava) e por isso vou-lhe
contar uma coisa. Estava já em minha casa, dentro dessas mesmas cartolinas,
quando eu era criança e proibiram a sua leitura às minhas irmãs que foram, por
isso, quem mais o leu e quem me relatou a história, antes que eu estivesse em
situação de a ler. Não a entendia bem; mas, quando a li já homem feito,
entendi. Chamavam-lhe O Manuscrito da Princesa apesar de,
como vê, ter, em inglês, o título incompreensível de A Rosa dos Ventos.
Recordo vagamente a princesa a quem pertenceu: uma anciã, de ar majestoso,
muito distinta que, numa quinta do Norte de Portugal, próxima da de meus pais,
se dedicava ao cultivo de camélias, flor da qual obtinha, segundo ouvi dizer
muitas vezes, exemplares estranhos e maravilhosos, mediante cruzamentos de
sementes e outras operações que, então, só lhe ocorriam a ela. Morreu em
consequência de uma queda: tinha subido a uma escada de mão e podava as suas árvores.
Escorregou, esmigalhou os ossos, e a vida abandonou-a, passados poucos dias.
Foi uma complicação enterrá-la, porque não era católica e por causa
de certa reputação de que já lhe falarei. Mandaram-se telegramas para Lisboa e
de lá se ordenou o seu embalsamamento, veio um dia alguém com poder, meteram o
féretro no comboio e disse-se que a tinham trasladado para a terra dela, num
país setentrional, onde a teriam enterrado num canto de uma catedral luterana.
Deus a tenha na sua glória. Pois a reputação de que lhe falei vinha-lhe do
facto de, uns anos antes, não viver só, mas sim com um cavalheiro bastante mais
velho do que ela, aí uns trinta anos, também de grande distinção, a quem chamavam
o rei, nunca se soube porquê, talvez pela elegância de destronado digno que
tinha. Uns diziam que era o pai da princesa; outros, que era o amante e, alguns,
que era ambas as coisas: daí o terrível dos boatos; algumas pessoas chamavam àquela
quinta das camélias A quinta do pecado,
e continuam a chamar-lhe assim. A única coisa certa e que a Corte de Lisboa os
protegia e provavelmente os sustentava, não se sabe se como reis no exílio e
que, quando ele morreu, o levaram também, embalsamado, para, um lugar longínquo
qualquer. Por ela, solitária, passaram anos e guerras, bem como algumas revoluções.
Nunca lhe aconteceu nada porque, apesar da lenda, era boa para as pessoas e as
pessoas amavam-na. Vivia, com modéstia, das suas flores, com a altivez de um
passado que ninguém conhecia no porte e na conduta com os grandes». In Gonzalo
Torrent, La Rosa de los vientos, A Rosa dos Ventos, Materiais para uma Opereta
sem Música, Difel, Linda-a-Velha, 1995, ISBN 972-29-0326-8.
continua
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