quarta-feira, 24 de abril de 2013

Breve História dos Judeus em Portugal. Jorge Martins. «Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da igreja. Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença profunda e sincera. “Todos?” ‘Não’»

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«O rei Manuel, ao invés de disponibilizar navios no Porto, em Lisboa e no Algarve, para a saída dos judeus do reino, determinou a sua concentração em Lisboa, garantindo-lhes o embarque para o estrangeiro. Cerca de 20000 judeus provenientes de todo o país acabariam por ser conduzidos ao Palácio dos Estaus, futura sede da Inquisição (maldita). Esfomeados, sedentos e encurralados em espaço exíguo, à espera dos prometidos navios, seriam, no entanto, visitados por dois irmãos convertidos, mestre Nicolau, futuro médico da rainha D. Isabel, esposa de Manuel I e Pedro de Castro, eclesiástico em Vila Real, dispostos a baptizá-los. Impossibilitados de saírem livremente do país, conforme fora prometido no Édito do ano anterior, seriam levados aos milhares às igrejas mais próximas e benzidos apressadamente contra sua vontade.
Mesmo os mais velhos e indefesos judeus foram arrastados pelos cabelos até à pia baptismal, preferindo alguns deles atirar-se aos poços e cisternas, numa inesquecível cena apocalíptica, que vários cronistas registariam. Não passaria muito tempo até que o rei Manuel exarasse nova portaria, desta vez para proteger os judeus, que ele bem sabia não se terem efectivamente convertido ao cristianismo, apenas os haviam obrigado a sê-lo formalmente, de forma a preservá-los no futuro, pouco importando se continuariam a judaizar ou não. Com efeito, a portaria de 30 de Maio de 1497 estipulava que ninguém poderia inquirir os cristãos-novos sobre matéria religiosa durante um período de vinte anos. Tratava-se de uma verdadeira amnistia geral, duma formalidade que preservava os judeus sem judaísmo declarado mas consentido.
Compreensivelmente, os judeus, que já haviam sido expulsos de Espanha e estavam agora a ser aprisionados em Portugal, não acreditaram na sinceridade desta medida e trataram de abandonar o nosso país mal puderam, com suas famílias e bens. Os mais abastados, antes de saírem, negociavam letras de câmbio com os cristãos, para serem trocadas noutros países. Detectada esta astuciosa artimanha hebraica, o rei aprovaria medidas que contrariavam a estratégia económica e a finalidade migratória, através de dois alvarás de 1499: o de 20 de Abril, que proibia os negócios com judeus, e o de 21 de Abril, que impedia a saída do reino de conversos de 1497, sem licença régia, ambos sob pena de perda dos bens dos infractores. Apesar destas medidas, um considerável número de judeus terá conseguido evadir-se da prisão lusa, subornando alguns zelosos cristãos.

Da expulsão ao estabelecimento da Inquisição
O massacre judaico de Lisboa de 1506
No entanto, o pior estava ainda para vir. O primeiro sinal dos tempos difíceis que se temiam foi o famigerado massacre judaico de 1506, que teve início no dia 19 de Abril, domingo de Pascoela cristã e que prolongou por mais dois dias. O clima que se vivia então em Lisboa era deplorável: a peste assolava a capital desde Outubro do ano anterior, situação dramaticamente ampliada pela seca e pela fome. O rei Manuel I refugiara-se em Abrantes. As ruas exibiam os horrores da tragédia. Naquele dia, o convento de São Domingos estava repleto de desesperados cristãos, velhos e novos, esperando um sinal divino que acudisse àqueles que não tinham posses ou condições de fuga. Constava que um milagre se manifestara, no dia 15 desse mês, naquele templo dominicano. A vontade de crer era demasiado forte para descrer em qualquer sinal, por pequeno ou inacreditável que fosse. A predisposição faz a ocasião. Era a única esperança. Não se podia desperdiçar uma fugaz manifestação divina. E aconteceu. O sinal implorado com toda a convicção repetiu-se. Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da igreja. Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença profunda e sincera. Todos? Não.
Na verdade, houve um que ousou duvidar da natureza divina da luz. Teria sido o reflexo de uma das muitas candeias acesas naquele convento, para chamar a atenção do Omnipotente. Incautamente, proferiu as palavras proibidas, indesejadas, demolidoras da esperança compensada. Era um cristão-novo. Heresia! Naquele domingo de Pascoela de 1506, apenas nove anos após a conversão forçada de milhares de judeus portugueses, decretada por Manuel I, já não se podia ser judeu, era-se cristão-novo oficial e criptojudeu de convicção. Mas, quem, em menos de uma década deixa de ser o que é, para ser aquilo a que o querem forçar? Muitos deles, quiçá a maioria, ter-se-ão tornado judeus secretos, com todos os perigos que isso implicava». In Breve História dos Judeus em Portugal, Jorge Martins, Nova Vega, colecção Sefarad, 2011, ISBN 978-972-699-920-1.

continua
Cortesia de Nova Vega/JDACT