«Tentemos
então acertar o passo com anteriores e posteriores relatos, neles atentando
como espaços de reflexão para o que, até tempos de Calderón de la Barca, terá sido o xadrez interpretativo (e
nem sempre coincidente) da estatura moral, da via dolorosa e dos favores sobrenaturais ao Infante
Fernando. Um tanto, mas não só, para não atrasar o encontro com El Príncipe Constante, haverá
que seleccionar directrizes, visto que nem todas as vicissitudes do nosso
protagonista nos importa revisitar com o mesmo intento pesquisador. Assim,
tomaremos como linhas mestras os binómios patriotismo vs religiosidade e auto-sacrifício vs
sacrifício imposto, as etapas e os contornos do martírio, as visões e os
milagres e as desencontradas indicações sobre a sua trasladação para Portugal,
não significando isto necessariamente que nos furtemos, de quando em vez, à
aproximação de outros troços aparentemente biográficos que possam ser-nos úteis
nesta rede de (des)encontros a deslindar, como será o caso das manifestações
virtuosas do Infante. Começar pelo
princípio não é tarefa de alto risco.
NOTA:
Embora com grande salto no tempo, e sem que neste artigo naturalmente como corpus os retenhamos,
lembremos os belos versos de Fernando
Pessoa, na Mensagem: Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça /
A sua santa guerra. / Sagrou-me seu em honra e em desgraça, / Às horas em que um
frio vento passa / Por sobre a fria terra. (…) E eu vou, e a luz do gládio
erguido dá / Em minha face calma. / Cheio de Deus não temo o que virá, /Pois,
venha o que vier, nunca será / Maior do que a minha alma. Antes
de nos centrarmos nos textos que ao Infante tomam como protagonista, lembremos
que, no Cancioneiro Geral, Diogo
Brandão assim fala dos irmãos do monarca Duarte: Seus jrmãos, os ijfantes, que tanta de parte / na vertude teverã,
polo bem que obraram, / tendo nas vydas trabalhos que farte, / com tristes
socessos algus acabaram. Cito pela edição de Gonçalves Guimarães,
Coimbra, Imprensa da Universidade, 1913.
É prática aceitar as
dívidas de Camões para com Rui
de Pina, no que com o acontecer histórico realmente se prendem Os Lusíadas; se outras fontes terão
sido consultadas, pelo menos, o manuscrito do cronista real deverá, afigura-se
pacífico, ter sido uma das principais.
NOTA: As crónicas de Rui
de Pina só foram editadas no século XVIII; entre 1790 e 1792, vieram a
lume as de Duarte, Afonso V e João II; muito provavelmente a outro cronista
deveriam ser reservados os louros pelo trabalho, mas, neste artigo, vamos
considerá-las como suas. Por razões pontuais de ordem prática, farei as
citações por Crónica do Rei D. Duarte,
edição organizada por António Borges Coelho,
Lisboa, 1966 e Chronica do Senhor Rey D. Afonso V, em Crónicas de Rui de Pina, introdução e revisão de M. Lopes de
Almeida, Porto, 1977.
Que nos vem então
ensinar o cronista de Duarte I e de D. Afonso V sobre os sucessos que aqui nos
importa não ignorar e sobre alguns dos seus
antecedentes que talvez valha a pena não perder por completo de vista? Pelo
primeiro dos textos, ficamos a saber que o Infante, apesar de ter sido provido
com o Mestrado de Avis, lhe parecia que com estas cousas ainda em
honra, terras e rendas era desigual em muita parte aos infantes seus irmãos e mostrava
de si grande descontentamento; apontadas, por ele próprio, algumas
hipóteses de ver acrescidos os seus escassos
bens, e apesar de muitas reticências por parte de gente de peso na corte,
acabaria por ganhar terreno uma sugestão do Infante Henrique, nela se
encaixando, não só, nem talvez prioritariamente, a justiça de uma recompensa a
Fernando, como também a resolução de alguns problemas de segurança do reino.
Trata-se, claro está, da tentativa de conquista de Tânger.
Esmiuçam-se, então, os
preparativos, alinham-se informes sobre a viagem, chega-se evidentemente à
derrota dos portugueses e, por fim, ao entendimento para a devolução de Ceuta,
ficando, como refém de que assim se faria, o Infante Fernando. Sob grande e
compreensível consternação, em Portugal, uns meses depois, convocam-se cortes
para Leiria, e, travado o combate das palavras entre prós e contras, nelas se
decide que Ceuta não será moeda de troca, o que não significava, diga-se em
abono da verdade, desinteresse pela sorte de Fernando para cuja libertação se procurariam
outros meios. Tudo isto, apesar de em público ter sido lido um escrito
de apontamentos que o infante Fernando, estando ainda em Arzila, para onde fora
a partir de Tânger, enviou a ele [ao rei] e a seu Conselho, em que desejoso sair
de cativo, apontava algumas causas e razões porque não era serviço del-rei, nem
bem de seus reinos manter-se Ceuta pelos cristãos, assinando os danos e perdas
e grandes despesas que Portugal pela suster recebia. E assim alegando outras
muitas fundadas em uma natural piedade por as quais Ceuta se devia dar por ele
(…), Rui
de Pina, Crónica do Rei D. Duarte». In Maria Idalina Rodrigues, Do Muito Vertuoso Senhor Ifante Dom Fernando a El Príncipe Constante, Via Spiritus 10, 2003.
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