segunda-feira, 1 de abril de 2013

Crónica do Rei Pasmado. Gonzalo Torrente Ballester. «Estava e preparar o banho da senhora. - Ah, isso parece-me bem. Realmente o que me pede o corpo é um banho, mas não muito quente. Como está o dia? - Escaldante, senhora»

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«Lucrécia acorreu ao terceiro grito de Marfisa. A verdade era que não tinha gritado tanto como noutras manhãs, em que a ouvia a vizinhança. - Lucrécia, Lucrécia do demónio, onde te meteste? Lucrécia entrou compungida. - Estava e preparar o banho da senhora. - Ah, isso parece-me bem. Realmente o que me pede o corpo é um banho, mas não muito quente. Como está o dia? - Escaldante, senhora. Pode-se estar no pátio graças à sombra da parra. Parece que o Verão se prolonga. Marfisa estava nua e esparramada em cima da cama, com as roupas aos pés, feitas numa rodilha, como se as tivesse espezinhado. - E aqueles dois? - Partiram de manhãzinha, senhora. - Iam satisfeitos? - E, antes que Lucrécia lhe respondesse, acrescentou: - Pagaram-te?
 - Em cima da mesa está uma bolsa com dez ducados de ouro e a mim o Rei deu-me meio ducado. Creio que não tinha mais. Deu o dinheiro a Marfisa, que o fez tilintar. - Pelo menos é ouro. Dez ducados, dizes tu? Sai a dois e meio por cada ofensa a Nosso Senhor, e a bolsa pela nega. É de bom veludo. - Uma nega, disse a senhora? - Sim, filha, a quinta já não pôde ser. Empenhou-se em mirar-me e remirar-me, e, quando se cansou, disse que tinha sono e deixou-me com a água na boca. Precisamente quando me começava a apetecer. E tu? - Eu passei a noite, senhora, num puro gozo, com o conde sempre em cima de mim, e aqueles olhos de gato que não deixavam de me fitar. Mais que de gato, de tigre. Os olhos dos tigres devem ser assim. Iluminavam o quarto todo.
 - Exageras. - Juro-lhe pela memória de minha mãe, que também foi p…, mas que se arrependeu a tempo. E o belo enterro que teve, graças a Deus e às almas cristãs! - Deixa em paz a memória da tua mãe, e alcança-me uma toalha, para me embrulhar. Enquanto tomo banho, prepara-me de almoçar. Estou morta de fome. Saltou da cama e embrulhou-se no toalhão que Lucrécia tinha tirado de um arcaz. Deixava-lhe a descoberto as coxas morenas e justas, as pernas esguias. Lucrécia contemplava-a. - Por isso é que as coisas são como são e não como deviam ser. Esse corpo merecia outra sorte. - Queres dizer um marido? - Deus me livre de tal coisa! Quero dizer melhores amantes.  - Parece-te pouco o Rei, ainda que seja só por uma noite? - O Rei não a deixou satisfeita, pelo que acabo de ouvir. Em compensação, eu… Enquanto saía do quarto, Marfisa respondeu-lhe: - O Rei é um catraio. Não sabe da missa a metade, nem nunca tinha visto uma mulher nua. O que aprenderia na minha cama, em sete noites! - Então, para que é que é Rei?

O Rei deixou de contemplar o horizonte, onde a última mulher nua se tinha desvanecido, e ficou alguns instantes cabisbaixo, embora com cara de aluado. Depois levantou-se e disse a Cosme, que esperava ao pé da porta: - Traz-me as chaves da sala proibida. Cosme tremeu visivelmente. - Isso mesmo, ouviste bem. -- E se mas recusarem, que faço? - Dizes que é ordem real. O moço de câmara inclinou-se profundamente e saiu. O Rei hesitou por instantes. Aproximou-se da janela aberta, que dava para a praça de armas. Um pelotão de soldados exercitava-se ao longe. Mais perto, conversavam alguns cavalheiros, e um cavaleiro muito emplumado caracoleava com o seu cavalo perante um grupo de espectadores estupefactos: tudo sob um sol que começava a ser tórrido. Alguém enxergou o Rei, e fez uma saudação com o chapéu. Os outros saudaram também, e os soldados do pelotão apresentaram armas, mas o Rei não os via: via apenas um imenso vazio: impreciso nos seus contornos, como se fosse feito de nuvens. Mas o céu estava limpo. O Rei fechou os olhos e continuou a vê-lo, e só então se convenceu de que o tinha dentro de si, de que não podia ver outra coisa. Ficou a contemplá-lo com o rosto imóvel e o olhar fixo, até que chegou o pajem e fez soar as chaves. O Rei voltou-se e estendeu a mão; o pajem, ao entregar-lhas de joelhos, advertiu: - Tive que as roubar, senhor. - Fizeste bem». In Gonzalo Torrente Ballester, Crónica del Rey Pasmado, Crónica do Rei Pasmado (Scherzo em re(i) maior alegre, mas não demasiado), Editorial Caminho, 1992, ISBN 972-21-0708-9.

Cortesia da E. Caminho/JDACT