sexta-feira, 19 de abril de 2013

Memória de Inês de Castro. António C. Franco. «As pazes e as tréguas, estou em crer, as concede o domínio que capitula e não a vontade que sujeita. A intervenção de Génova, ao lado do rei de Marrocos, foi, porém, decisiva para alterar os planos do rei castelhano»


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«A vitória do estreito obtida em 1333 com a tomada de Gibraltar tinha sido, para Ali Boacem, decisiva. Ao regressar de Fez o sultão levara centenas de prisioneiros que ficaram durante três dias expostos no Souk do centro da cidade, que tinha sido fundada quatro séculos antes. Fez está no contraforte do Atlas--Médio e representa, por isso, a ideia duma estabilidade central, que está tão perto do Rife como dos poderosos picos, com mais de três mil metros de altitude, do grande Atlas. A cidade foi durante muitos anos o centro cultural e religioso de Marrocos, com a sua bela universidade e a célebre mesquita Karouim.
Era a capital de Marrocos na época de Ali Boacem e para ali confluía todo o grande exército que este rei decidira preparar para invadir a Península. Era um batalhão gigantesco que se avolumou cada vez mais à medida que o tempo passava. Quando se pôs mais tarde em movimento, demorou alguns dias a sair dos arredores da cidade.
Foram os ecos desta expedição militar à Península que levaram o rei de Castela a tentar por todos os meios a paz com o rei de Aragão. Indiferente às pretensões de sua irmã D. Leonor, que reclamava as cidades que lhe tinham sido doadas por casamento com Afonso IV de Aragão, e indiferente às queixas dos sobrinhos, Fernando e João, que eram meio-irmãos do rei de Aragão, Afonso de Castela pensa, frente às alarmantes notícias que correm sobre o exército que se estava a organizar em Fez, conseguir uma aliança com Aragão, que lhe seria em todos os sentidos indispensável. Sem uma armada naval experiente e desenvolvida, contando apenas com homens que se tinham formado na transumância do planalto, ele sentia absolutamente necessária a perícia naval catalã e indispensável a utilização da forte e desenvolvida marinha de guerra que os catalães possuíam. E a imagem que projectamos nos outros, reflecte-se logo sobre nós. O seu plano, tecido em Sevilha com a ajuda da família Gusmão que o servia nos lugares-chave da burocracia militar, era, mesmo sem Algeciras e Gibraltar, irremediavelmente perdidas, impedir a entrada do exército africano em território interior. Parecia-lhe mais fácil dar batalha no mar, do que fazer a guerra em terra. Exigia-lhe isso uma enorme fidelidade às águas e uma cerrada vigilância do estreito, que só podia ser eficaz se fosse coadjuvada pela marinha catalã.
Os boatos que corriam de que se se repetisse uma nova batalha de Guadalete, a costa de-Múrcia-Alicante seria a primeira a cair, logo seguida por Valência e pelas Baleares, levou Pedro IV a um compromisso como o rei de Castela, que foi assinado em 1338 em Múrcia por intermédio de João Manuel, que continuava ao serviço do rei de Aragão. As naus de Gilberto de Cruilhas partiram poucos dias depois para o estreito de Gibraltar onde as de Joffre Tenório, o almirante castelhano que acabara de fazer uma razia nos portos do Algarve, já sulcavam. Afonso XI não sentiria qualquer necessidade de fazer as pazes com Portugal e aproveitara mesmo o facto de estar a concentrar forças na região de Huelva para exercitar duas ou três mesnadas de homens, invadindo com eles Portugal pela fronteira do Algarve, atravessando o Guadiana junto de Alcoutim e pondo fogo a Castro Marim, Tavira, Loulé e Faro. Retirara-se depois calmamente, enquanto que o rei português, apanhado de surpresa, preferia invadir pessoalmente a Galiza, atravessando o rio Minho. Era violenta a firmeza, onde era natural a inconstância.
As pazes e as tréguas, estou em crer, as concede o domínio que capitula e não a vontade que sujeita. A intervenção de Génova, ao lado do rei de Marrocos, foi, porém, decisiva para alterar os planos do rei castelhano. As tréguas entre Castela e Portugal foram feitas desde os finais do ano 1338 e as pazes foram assinadas em Sevilha, onde o almirante Pessanha e o seu filho Carlos continuavam a passear ao longo dos claustros fechados, enquanto lá fora se ouviam cantar os ciganos. Afonso de Castela pensava reforçar a sua esquadra com Pessanha, o que significava poder dispor dum técnico genovês que conhecia muitíssimo bem todas as manobras de navegação de guerra do inimigo. Por outro lado, a belíssima posição dos portos portugueses dava ao castelhano uma rectaguarda marítima. A curiosidade genovesa, e sabe-se como a curiosidade era importante para navegar sem declinação magnética ou sem astrolábio, agudizava-se ao contacto com o Atlântico e bem apetrechados duma experiência secular os genoveses eram preciosos auxiliares de todo e qualquer empreendimento naval. Prostituta sagrada dos mares, Génova, de corpo febril, iniciou a Península numa espécie de febre marítima.
As pazes entre Portugal e Castela foram assinadas em Sevilha em 10 de Julho de 1339. Estava um dia de ardente calor e os homens tinham de se refugiar depois do almoço debaixo dos tectos de cal dos seus quartos, onde se sentia o fresco da sombra. A sombra é nesses dias uma expectativa silenciosa, a única companhia e desapaixonada. A paixão é do sol, como a serenidade é da sombra. As cartas foram assinadas ao fim da tarde, quando o Sol declinava já no horizonte. A sua labareda envolvia ainda, como flamejante cauda de cometa, toda a superfície da terra. O sol era, de Verão, uma estrela que se desfazia em sucessivas combustões. Vivia-se mais de noite, porque esta, no seu azul profundo, trazia uma frescura consoladora. O dia doía, enquanto que a noite consolava.
A partir das dez horas da manhã as ruas ficavam desertas e as fasquias de madeira das gelosias cerravam-se. Há nessas vilas do Sul uma solidão maravilhada e perene que muito tem a ver com essa luminosidade insuportável». In António Cândido Franco, Memória de Inês de Castro, Publicações Europa-América, 1990.

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