sábado, 16 de maio de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Aproveito o ensejo para perguntar a Diogo, que se encontra a meu lado: quem é? É o mestre de Santiago e de Avis, dom Jorge, filho do rei João II e duque de Coimbra. Podia ser ele o rei, mas Deus não quis»

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A Letra Pitagórica
«(…) Talvez seja a altura de vossa paternidade me dizer mais alguma coisa de quem sou, nesta hora decisiva da minha vida... Fez um longo e cavo silêncio. O seu semblante tomou um ar angustiado, esboçou com a mão um gesto de hesitação e por fim disse: segredos de confissão não se revelam e há outros que sem o serem são como se o fossem. Tudo o que tenho feito, tudo o que faço e farei é para teu bem... Deixa-me dar-te uma sugestão. É uma maneira de responder-te sem quebra de sigilo. Pantaleão, sim, mas não de Miragaia: Pantaleão, de Aveiro..., e repetia, repisando as sílabas: ... de Aveiro..., de Aveiro... Não me perguntes mais coisa nenhuma, que isto tem de morrer comigo…, e abraçou-se a mim a chorar... Fora lá que eu nasci? Deixasse-me lá ir antes de tomar hábito. Olhou-me, muito nervoso, os olhos em movimento como se estivesse a querer agarrar e fixar os pensamentos que iam e vinham em tumulto, e respondeu: nunca por nunca! Jura-me que não, que nunca irás a essa terra, que nunca tentarás ir...
Vi-o tão aflito que prometi: está bem! Descansai. Não irei. Duas semanas depois, luzida cerimónia se realizava na sé catedral, com missa cantada e a presença da corte e de muitos fidalgos das cercanias. O vasto templo estava apinhado quando nós entramos, vindos da sacristia, à frente do cortejo eclesiástico, e nos postamos nos lugares que nos eram destinados junto do altar. O deão, com os cónegos e acólitos, desceu a igreja por entre alas de povo, até à porta, a esperar o prelado e, quando este chegou, ali aguardaram a vinda de el-rei, que todos os domingos vinha assistir à sé, com a rainha, ao ofício divino. A sua presença motivava a dos principais senhores da região e naturalmente toda esta nobilíssima assistência fazia que o povo acorresse à igreja, mais por curiosidade que por devoção. El-rei chegava e era conduzido a lugar de honra, na capela-mor, do lado do evangelho, e depois de com a rainha ajoelhar por instantes nos riquíssimos genuflexórios de veludo carmesim debruado a ouro, tomavam ambos assento nos cadeirões especiais que atrás de si os aguardavam. Dois degraus acima estava o bispo em seu trono.
Como nós, os ordinandos, ocupávamos lugar apropriado, ao correr da parede, do lado da epístola, podíamos apreciar as pessoas que se encontravam na capela-mor e abrangíamos com a vista larga área do público, pela nave central a baixo. Eu sobretudo, dado o meu feitio curioso, em tudo reparava, com prejuízo, ai de mim, da concentração e devoção que devera ter em tão grave solenidade. Perto do rei via-se um fidalgo de cabelo todo branco, porte altaneiro, que eu não conhecia. Gloria in excelsis Deo!, o órgão e o coro enchiam com suas ondas sonoras todo o templo até às altas abóbadas... Aproveito o ensejo para perguntar a Diogo, que se encontra a meu lado: quem é? É o mestre de Santiago e de Avis, dom Jorge, filho do rei João II e duque de Coimbra. Podia ser ele o rei, mas Deus não quis. Agnus Dei... qui tollis pecata mundi miserere nobis qui tollis peccata mundi suscipe deprecationem nostram..., cantava o coro. Lembrei-me de Margarida e da nossa cantiga estouvada. Lancei um olhar à assistência e foi sem qualquer espécie de sobressalto que, numa nesga entre cabeças da multidão, a descortinei.
Tinha os olhos vermelhos de chorar e fitava-me. Atrás dela estava Elsa, também comovida. Sorri-lhes. O cotovelo de Diogo tocou o meu: o que está junto de dom Jorge é seu filho, o marquês de Torres Novas e duque não me lembro de quê, o do casamento a furto de que ouvimos em Loulé. Olhei para ele. Era alto, ao contrário do pai. Tinha um ar muito sisudo e triste. O seu olhar de vez em quando percorria o altar, parava atentamente nas coisas, nas pessoas, em nós, e ia perder-se depois na aglomeração de gente da nave principal, para regressar, se erguer até ao órgão, às cúpulas das abóbadas, ao lanternim octogonal e cair de novo no altar. Era evidente que aquele homem tinha o pensamento em contínua ebulição». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT