quarta-feira, 27 de maio de 2020

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros…»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Se por vezes parava, recolhendo-se n'uma quietação attenta, logo um gesto brusco desmanchava a sua immobilidade de estatua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a andar. Vens ou não vens?, perguntava elle, evocando com dorido esforço a imagem da mulher ou da filha. Não vinha; e quando apparecia era como se fosse um relampago, apagava-se logo. N'esta lucta com a sua dôr as horas iam passando longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrellas, pois que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paizagem o largo silencio da noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia somnolenta do rio. Um rapaz que ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto perpassar de repente e de repente sumir-se n'um recanto onde a sombra era mais densa. Temos historia..., resmungou comsigo o rapaz. E, rente a uma arvore, quedou-se alapardado, á espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme: aquillo era mariola de larapio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se então, e poz-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar a primeira. Cão do diabo!, exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar a pedra. Espera que eu te arranjo... E já ia arremessal-a na direcção do canto, quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao logar onde o rapaz estava. Melhor! Mais a geito ficas...
E debruçando-se um pouco na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros, alvejavam-lhe as mangas da camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte d'elle, parou. Foi então que o rapaz se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com effeito, ser o d'elle; lembrava-se agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aquelles carreiros por onde ellas tinham andado. Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente, deixou cair as pedras e perguntou: tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luiz... Vossemecê que tem? O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O rapaz insistiu: doe-lhe alguma coisa, ó tio José? Não dóe, não. Sabes que mais? peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas afflicções. Vae com Deus, vae. O rapaz ficou surprehendido, triste do tom de supplica dorida que o José Cosme dera áquellas palavras, e retirou-se silencioso, quasi aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso jogasse a pedrada.
No emtanto a noite ia avançando, grave, soturna, sem outro ruido que não fosse o das aguas do rio. E o José Cosme, sem despegar do seu fadario, ia e vinha pelas ruas do horto, lembrando um automato ou um somnambulo. Ás vezes abeirava-se da porta de casa e punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio. N'isto, de uma vez que passava em frente do cancello, pareceu-lhe ouvir passos. Ó Thomaz! Sr. José!, respondeu o que entrava, n'uma voz que era mesmo voz de barqueiro. O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontral-o a pé, elle então redarguiu-lhe que nem se tinha deitado. Como tinha de madrugar... Pois são horas de largar, sr. José; isto vae p'r'as duas». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT