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De acordo com o original
«(…) Se por vezes
parava, recolhendo-se n'uma quietação attenta, logo um gesto brusco desmanchava
a sua immobilidade de estatua, soltava um fundo gemido, e punha-se de novo a
andar. Vens ou não vens?, perguntava elle, evocando com dorido esforço a imagem
da mulher ou da filha. Não vinha; e quando apparecia era como se fosse um
relampago, apagava-se logo. N'esta lucta com a sua dôr as horas iam passando
longas. Era já tarde, talvez a uma da noite. Luz, apenas a das estrellas, pois
que o luar nascia tarde. Pesava sobre toda a paizagem o largo silencio da
noite, apenas cortado, ao longe, pela melopeia somnolenta do rio. Um rapaz que
ia na estrada olhou por acaso para o horto do José Cosmo e viu um vulto
perpassar de repente e de repente sumir-se n'um recanto onde a sombra era mais
densa. Temos historia..., resmungou comsigo o rapaz. E, rente a uma arvore,
quedou-se alapardado, á espreita. Não desconfiou que fosse o José Cosme:
aquillo era mariola de larapio que vinha por ali fazer das suas. Agachou-se
então, e poz-se a procurar uma pedra. Apanhou duas, para o caso de não acertar
a primeira. Cão do diabo!, exclamou baixo o rapaz, pondo-se em posição de jogar
a pedra. Espera que eu te arranjo... E já ia arremessal-a na direcção do canto,
quando o vulto saiu da sombra e tomou por um carreiro, direito ao logar onde o
rapaz estava. Melhor! Mais a geito ficas...
E debruçando-se um pouco
na parede, poz-se a fixar o vulto que avançava, para ver se o conhecia. Quem
quer que era trazia a jaqueta sobre os hombros, alvejavam-lhe as mangas da
camisa. A meio do carreiro, mesmo defronte d'elle, parou. Foi então que o rapaz
se lembrou do José Cosme. O vulto parecia, com effeito, ser o d'elle; lembrava-se
agora de ter ouvido que o pobre homem, quando o ralavam saudades da mulher e da
filha, levava noites em claro, a percorrer como doido aquelles carreiros por
onde ellas tinham andado. Quando ouviu soluçar, acabou então de se convencer. Insensivelmente,
deixou cair as pedras e perguntou: tio José! Ó tio José! Sou eu, o Luiz...
Vossemecê que tem? O lavrador não respondeu, parece que nem tinha ouvido. O
rapaz insistiu: doe-lhe alguma coisa, ó tio José? Não dóe, não. Sabes que mais?
peço-te pelas alminhas que me deixes. Bem me bondam as minhas afflicções. Vae
com Deus, vae. O rapaz ficou surprehendido, triste do tom de supplica dorida
que o José Cosme dera áquellas palavras, e retirou-se silencioso, quasi
aterrado agora com a ideia de que poderia ter matado o pobre homem, caso
jogasse a pedrada.
No emtanto a noite ia
avançando, grave, soturna, sem outro ruido que não fosse o das aguas do rio. E
o José Cosme, sem despegar do seu fadario, ia e vinha pelas ruas do horto,
lembrando um automato ou um somnambulo. Ás vezes abeirava-se da porta de casa e
punha-se a escutar. Como não sentia nada, voltava de novo ao seu passeio.
N'isto, de uma vez que passava em frente do cancello, pareceu-lhe ouvir passos.
Ó Thomaz! Sr. José!, respondeu o que entrava, n'uma voz que era mesmo voz de barqueiro.
O Cosme sentiu então uma grande vontade de chorar, mas remordendo os beiços
dominou-a. Como o barqueiro estranhasse encontral-o a pé, elle então
redarguiu-lhe que nem se tinha deitado. Como tinha de madrugar... Pois são
horas de largar, sr. José; isto vae p'r'as duas». In Trindade Coelho, Os Meus
Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de
Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª
edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.
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