segunda-feira, 4 de maio de 2020

Relicário. Douglas Preston & Lincoln Child. «Margo leu o primeiro parágrafo. Notava-se à légua que só poderia ter sido escrito pelo Smith. Este era o segundo artigo a aparecer este mês na primeira página…»

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«(…) Recostou-se e ficou à espera que o telefone deixasse de tocar, com os músculos das costas e das pernas agradavelmente doridos pelos esforços da noite anterior. Pegou na bola de massagem que estava sobre a secretária e começou a espremê-la num movimento de rotina tão familiar que já se tinha tornado quase instintivo. Mais cinco minutos e o programa estaria terminado. Quando isso acontecesse, podiam protestar à vontade. Margo sabia perfeitamente o que implicavam as novas políticas de cortes orçamentais que exigiam que os trabalhos mais complexos fossem sempre submetidos a uma aprovação prévia. Por outras palavras: isso significava uma quantidade enorme de e-mails, antes que ela pudesse iniciar qualquer tipo de programa. Mas a verdade é que precisava já dos resultados. Na Universidade de Colúmbia, onde tinha leccionado antes de vir trabalhar para o Museu de História Natural de Nova Iorque como curadora, não costumavam haver tantos cortes orçamentais. E quanto mais o museu se metia em problemas financeiros, mais parecia confiar no fogo-de-vista em vez da substância. Margo já tinha notado como as coisas estavam a complicar-se em antecipação da grande exposição do ano, As Pragas do Século XXI.
Deitou uma vista de olhos ao ecrã, voltou a poisar a bola de exercício, meteu a mão ao saco e retirou um exemplar do New York Post. O Post, acompanhado por uma taça de café do Kilimanjaro, tinha-se tornado no ritual de todas as manhãs de trabalho. Havia qualquer coisa de refrescante na atitude truculenta do Post, como a daquele puto gordo nos Pickwick Papers. Além disso, sabia que o seu amigo Bill Smithback lhe haveria de dizer das boas se alguma vez viesse a descobrir que lhe tinha escapado um dos seus artigos sobre homicídios. Espalmou o tablóide sobre os joelhos, sem conseguir conter um sorriso com o que diziam os cabeçalhos. Eram Posteanos puros e duros, com um título a vermelho a encher três quartos da página:

Cadáver nos Esgotos Identificado como sendo a Debutante Desaparecida

Margo leu o primeiro parágrafo. Notava-se à légua que só poderia ter sido escrito pelo Smith. Este era o segundo artigo a aparecer este mês na primeira página. Graças a ele, Smithback ainda haveria de ficar mais pomposo e insuportável do que o costume, impossível de se aturar. Passou os olhos em diagonal pelo artigo. O estilo era tipicamente smithoniano: sensacionalista e macabro, repleto de pormenores sinistros. Logo nos primeiros parágrafos resumia todos os factos bem conhecidos dos nova-iorquinos. A linda herdeira Pamela Wisher, famosa pelos seus devaneios nocturnos pelos clubes da moda, tinha desaparecido há quatro meses da cave de um deles, em Central Park South. Desde então, as autoridades espalharam cartazes com a fotografia do seu rosto sorridente, dentes rutilantes, inexpressivos olhos azuis e cabelos loiros penteados a preceito, em tudo o que era rua, desde a Rua 57, à 96. Margo já tinha passado várias vezes pela fotocópia colorida da Wisher enquanto fazia joggins, vinda do seu apartamento na Avenida West End em direcção ao museu.
Finalmente, anunciava o artigo num tom afogueado os restos mortais encontrados no dia anterior, enterrados nas águas do esgoto de Humboldt Kill, num abraço ósseo com um outro esqueleto, tinham sido identificados como pertencentes a Pamela Wisher. O segundo esqueleto ainda estava por identificar. Uma fotografia adjunta mostrava o namorado da Wisher, o jovem visconde Adair, sentado à entrada do Platypus Lounge, com a cabeça entre as mãos, minutos depois de lhe terem dado conhecimento do triste fim da noiva. A polícia, claro, andava a tomar medidas rigorosas. Smithback terminava o artigo com várias citações de transeuntes, do género espero-que-fritem-o-cab…-que-lhe-fez-isto!
Margo poisou o jornal, enquanto se recordava da fotografia granulada do rosto de Pamela Wisher a observá-la de um dos numerosos cartazes. A miúda merecia uma sorte melhor do que transformar-se na grande notícia deste Verão». In Douglas Preston & Lincoln Child, Relicário, 1997, Edições Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-989-637-126-5.

Cortesia de ESEmergência/JDACT