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Setúbal,
22 de Janeiro de 1471
«(…) A promessa de casamento com
meu primo João foi assinada quando tinha apenas doze anos de idade. O noivo era
pouco mais velho do que eu, porque a diferença de idades existente entre nós
era apenas de três anos. Apesar de o achar garboso, ainda não o amava. O meu futuro
marido era um jovem bem-parecido, de estatura média, airoso e bem
proporcionado. Tinha um rosto comprido, olhos escuros, cabelo castanho, uma
boca e um nariz bem-feitos. Começavam já a notar-se uns pelos na cara que mais
tarde se viriam a traduzir numa barba cerrada e escura, a qual ele dedicaria
muita da sua
atenção. Diria mesmo que o meu
futuro marido era muito zeloso quando estava em causa o seu aspecto. No que
respeita às suas características morais, o seu preceptor não se acanhava em lhe
tecer elogios e dizia que era esperto, subtil, engenhoso, detentor de uma
memoria fenomenal, arguto e prudente. Também referia que tinha grande
facilidade em se expressor, embora detivesse sempre um semblante grave. Dizem
os mais velhos que era um Príncipe Perfeito, mas sei que estas características,
visíveis desde muito jovem, iriam traduzir-se, mais tarde, num feitio difícil
que seria temido por todos.
A promessa de casamento teve lugar
em Setúbal, no dia 22 de Janeiro, mas não existiram festejos significativos,
dada a necessidade de pedir ainda ao papa a dispensa de impedimento de parentesco
para validar este casamento. Devido à nossa idade, aquilo que deveria ter sido
um grande acontecimento foi apenas uma pequena cerimónia. Também o recente
falecimento de meu querido pai e o facto de ainda nos encontrarmos de luto
pesaram na escolha de se efectuar somente um pequeno evento.
Beja,
Paço Ducal, 16 de Agosto de 1472
Aquando da fundação do ducado de
Beja, a família veio residir para esta cidade alentejana, onde foi edificado um
bonito palácio branco cravejado com azulejos mouriscos. Junto ao Palácio dos
Infantes, foi também mandado construir o Convento de Nossa Senhora da Conceição
com a sua grande escadaria, onde muitas vezes brinquei com Bé e Manuel Foram
tempos muito felizes, dos quais tenho muitas saudades. Mas tudo isso iria
mudar, porque tempos conturbados estavam para chegar.
Desde que meu pai partira, a
família recolhera-se durante longos meses no Alentejo. Encontrávamo-nos em
Beja, naquele tórrido mês de Agosto, quando o meu irmão João morre repentinamente.
João, o irmão que herdara de
nosso pai vários títulos, finou-se subitamente. Não houve tempo sequer para que
os médicos lhe diagnosticassem o problema e João faleceu alagado em suores e
delirando durante várias horas. Morreu jovem, solteiro e, porque não tinha
filhos, foi o nosso irmão Diogo que lhe sucedeu, tornando-se um dos mais
poderosos nobres do reino, logo a seguir ao duque de Bragança. João era o mais
sensato dos meus irmãos mais velhos. Ao contrário de Diogo, era educado, amável
e sensível. Foi devido à sua morte prematura que a historia dos duques de Viseu
veio a ser escrita com sangue. Nada do que veio a suceder teria certamente
acontecido se João não tivesse morrido naquela altura.
Todos nós, à excepção de Diogo, ficámos
devastados quando o nosso irmão deu o último suspiro. Diogo nem esperou pela
confirmação régia, autoproclamou-se desde logo duque de Viseu e saiu pavoneando-se
pelo paço, dando ordens inconvenientes e exigindo desde logo obediência e empenho
aos seus servos. Minha mãe apesar de ser uma mulher forte, ficou de rastos com a
morte de João». In Paula Veiga, A Rainha Perfeitíssima, 2017, Edições Saída de
Emergência, 2016/2017, ISBN 978-989-773-014-6.
Cortesia de ESdeEmergência/JDACT