Cortesia
de wikipedia e jdact
Acaso
«(…)
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos
escrevem-se versos.
Escrevem-se
versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar,
ou até sem calhar,
Maravilha
das celebridades!
Ia eu
dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto
era a respeito de uma rapariga,
De uma
rapariga loira,
Mas qual
delas?
Havia uma
que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra
espécie de rua;
E houve
esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra
espécie de rua;
Por que
todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que
foi é a mesma morte,
Ontem,
hoje, quem sabe se até amanhã?
Um
transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu
a fazer versos em gestos e caretas? Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma
afinal...
Tudo é o
mesmo afinal...
Só
eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal».
Acordar
«Acordar
da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da
Rua do Ouro,
Acordar do
Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio
de tudo a gare, que nunca dorme,
Como
um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.
Toda a
manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há
manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em
que o dia raia, em que a luz estremece a erguer-se
Todos os
lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E
é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.
Uma
espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio
de viver de que o nosso corpo partilha,
Um
entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os
sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a
leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a
invasora lenta das ruas das cidades que vão leste-oeste,
Seja
A mulher
que chora baixinho
Entre o
ruído da multidão em vivas...
O vendedor
de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de
individualidade para quem repara...
O arcanjo
isolado, escultura numa catedral,
Siringe
fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto
tende para o mesmo centro,
Busca
encontrar-se e fundir-se
Na
minha alma».
[…]
In
Fernando Pessoa, Poemas Completos de Álvaro de Campos, Tinta da China,
2014, ISBN 978-989-671-232-7.
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