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A
Letra Pitagórica
«(…) Cantados os últimos hinos, o
prelado virou-se e deu a sua bênção e, enquanto nós voltávamos ao nosso posto,
com seus acólitos preparou-se para acompanhar o rei até à porta do templo,
seguidos da fidalguia. A capela-mor ficou deserta e, uma vez que o cortejo real
deixou a igreja, nós seguimos em fila em direcção à sacristia e atrás de nós os
demais sacerdotes que haviam ficado no altar e o deão da sé que regressara de
se despedir do bispo. O povo também já saía, a igreja começava a ficar vazia, o
ar estava pesado dos cheiros misturados de cera, incenso e suor. Mas na retina
dos meus olhos, nos meus ouvidos, permaneciam fragmentos de sensações que eu
não sabia ainda examinar: um semblante, uma voz, um retalho de órgão e coro, a
imagem fugidia de Margarida e Elsa, e sobretudo a impressão concreta,
epidérmica, de que alguém ali tinha uns olhos que me enviavam uma mensagem
particular.
A porta do mundo
«Que grandes povoações? Que
grandes reis? Que riquezas? Que costumes? Que estranhezas? Que gentes e que
nações?» In (Garcia de Resende)
Estive ainda alguns anos em Évora
antes de vir para Enxobregas. Nesta época da minha vida, vagueio por toda a
região, fazendo centro nesta cidade, mas agora as minhas incursões vêm mais
para norte. Vagueio, quase diria vagabundeio, porque este meu deambular, embora
as pessoas assim o pensem, no meu intimo reconheço não ser um andarilhar de
franciscano senão um deambular perdido, desorientado, em busca de não sei quê,
na procura de tudo aquilo que me os olhos, os ouvidos, todos os sentidos captam
avidamente. Sou um ajuntador de imagens que guardo na retina... Trechos de
lugares, de pessoas, de coisas ínfimas para que mais ninguém olha: aquele pátio
largo e arejado de uns paços em Almeirim, o recorte negro do granito das ameias
do
castelo de Avis a contrastar com a brancura do casario; a sunptuosidade
da rica casa dos senhores de Bragança em Vila Viçosa; coutos, honras e
senhorios por terras de além e riba Tejo tão frequentemente visitados que me
torno uma figura familiar de todos, se bem que ninguém saiba quem é este frade
que não tem parança, de aldeia em aldeia, de lugar em lugar... Sou um ajuntador
de imagens que não raro trazem até mim fragmentos de recordações longínquas: o
trinco ou a soleira daquela porta em Palmela, a boca desdentada daquela mulher
a quem um dia pedi água em Sesimbra, a forma daquele púcaro de barro vermelho
ladrilhado de pequeníssimas pedrinhas, na feira de Nisa... Sou um captador
de sons que conservo no ouvido: de uma ave que canta, um rio que marulha, a voz
de uma pessoa... Sou um olfacteador de cheiros e aromas que perpassam na asa de
uma aragem ou de um movimento de corpo. Muito atento sempre, procuro se é
possível identificar os novos lugares visitados com lugares que conservo em
reminiscência do passado, vozes de pessoas agora encontradas com vozes de
outras que ouvi na minha infância. Porque será que é vulgar, quase constante,
encontrar postos em mim olhos perscrutadores, mas lábios cerrados. Todavia nada
há como os cheiros e o sabor para nos evocarem o tempo escoado: o perfume que
se exala da terra depois da primeira chuvada ou o cheiro forte do feno curtido
pelo gado, o gosto aromático da ameixa de Elvas ou da laranja sumarenta dos
campos de Setúbal...
De todas as terras por onde
passava, que conhecia como as palmas das minhas mãos, nenhuma no entanto se
igualava à fresca serra de Ossa, em cuja sombra acolhedora muito gostava de me
refugiar quando me assaltava a melancolia monástica, estado de espírito que, por
meu mal, me era cada vez mais frequente. A minha vida parecia não fazer sentido
e, quando eu me fatigava deste contínuo mudar de lugar, passava longos tempos
agarrado aos livros a ler e a estudar tudo o que me vinha ao alcance, e muito
era, que Évora se tornara um centro muito activo e importante na produção de
novidades que doutíssimos sábios constantemente faziam editar.
Diogo,
ao contrário de mim, entrava num período de exaltação apostólica e requereu
licença para ir missionar às nossas índias Ocidentais. Deixei assim de ter companheiro
para as minhas deslocações e um confidente insubstituível das minhas mágoas,
dos meus escrúpulos, e um ouvido atento e caridosamente compreensivo das minhas
loucuras e da minha irreverência. A última vez que saímos juntos, íamos nós por
uma rua da cidade e os sinos de várias igrejas repicavam. Disse-me: vou ter
saudades das tuas traquinices, da tua poesia, da tua boa disposição, como vou
ter saudades destes sinos e do nosso convento. Nada disso é irremediável, retorqui
eu, naquele meu jeito de desarmar a emoção eminente por meio da brincadeira. Encontrarás
outro convento e outros irmãos amáveis como eu. E, quanto aos sinos, por todo o
mundo, onde quer que estejas, a conversa deles uns com os outros é sempre do
mesmo teor. Também eu abandonava de vez Évora, para me dirigir ao nosso
Convento de Enxobregas... Évora e Diogo! Encerrava-se um importante período da
minha vida, mas outro não menos assinalável se iniciava. Fiz coincidir a minha
partida com a de Diogo e uma manhã de acácias, glicínias e laranjais a
embalsamarem o ar despedimo-nos do dom Abade, que nos abraçou muito
sensibilizado e me rogou com empenhada insistência, dizendo ser serviço de
Deus, fizesse caminho pela Arrábida e lhe levasse recado aos nossos irmãos
capuchos que lá têm seu eremitério. Acedi com agrado e acompanhei Diogo até
Setúbal, donde partia a nau que o havia de levar. Tomei depois pela beira-rio
em direcção à serra e pude, durante muito tempo, acompanhar o barco com a vista
até desaparecer no horizonte. Fazia tenção de pernoitar no convento, mas a
Providência divina dispôs as coisas de outro modo, pois estando aí de visita o
seu fundador e protector, o senhor dom João Lancastre, insistiu comigo o
acompanhasse a seu paço de Azeitão, onde ao dia seguinte, que era domingo,
folgaria muito que lhe dissesse missa, na igreja da terra, que era ao pé. Como
não pudesse dizer que não a um tão grande senhor, desci a serra em sua
companhia, montado numa azémola que sua senhoria para mim mandou aprestar.
Durante o caminho, tinha a bondade de se pôr a meu lado todas as vezes que as
veredas, quase sempre estreitíssimas, ladeadas de vegetação cerrada, o
consentiam e fazia-me muitas perguntas acerca da minha pessoa. Lembrava-se bem,
agora que eu lho recordava, de ter assistido à cerimónia da minha tonsura e
quis saber o motivo porque eu havia escolhido um nome tão estranho». In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT