domingo, 17 de maio de 2020

A Casa do Pó. Fernando Campos. «… um semblante, uma voz, um retalho de órgão e coro, a imagem fugidia de Margarida e Elsa, e sobretudo a impressão concreta, epidérmica, de que alguém ali tinha uns olhos que me enviavam uma mensagem particular»

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A Letra Pitagórica
«(…) Cantados os últimos hinos, o prelado virou-se e deu a sua bênção e, enquanto nós voltávamos ao nosso posto, com seus acólitos preparou-se para acompanhar o rei até à porta do templo, seguidos da fidalguia. A capela-mor ficou deserta e, uma vez que o cortejo real deixou a igreja, nós seguimos em fila em direcção à sacristia e atrás de nós os demais sacerdotes que haviam ficado no altar e o deão da sé que regressara de se despedir do bispo. O povo também já saía, a igreja começava a ficar vazia, o ar estava pesado dos cheiros misturados de cera, incenso e suor. Mas na retina dos meus olhos, nos meus ouvidos, permaneciam fragmentos de sensações que eu não sabia ainda examinar: um semblante, uma voz, um retalho de órgão e coro, a imagem fugidia de Margarida e Elsa, e sobretudo a impressão concreta, epidérmica, de que alguém ali tinha uns olhos que me enviavam uma mensagem particular.

A porta do mundo
«Que grandes povoações? Que grandes reis? Que riquezas? Que costumes? Que estranhezas? Que gentes e que nações?» In (Garcia de Resende)
Estive ainda alguns anos em Évora antes de vir para Enxobregas. Nesta época da minha vida, vagueio por toda a região, fazendo centro nesta cidade, mas agora as minhas incursões vêm mais para norte. Vagueio, quase diria vagabundeio, porque este meu deambular, embora as pessoas assim o pensem, no meu intimo reconheço não ser um andarilhar de franciscano senão um deambular perdido, desorientado, em busca de não sei quê, na procura de tudo aquilo que me os olhos, os ouvidos, todos os sentidos captam avidamente. Sou um ajuntador de imagens que guardo na retina... Trechos de lugares, de pessoas, de coisas ínfimas para que mais ninguém olha: aquele pátio largo e arejado de uns paços em Almeirim, o recorte negro do granito das ameias do castelo de Avis a contrastar com a brancura do casario; a sunptuosidade da rica casa dos senhores de Bragança em Vila Viçosa; coutos, honras e senhorios por terras de além e riba Tejo tão frequentemente visitados que me torno uma figura familiar de todos, se bem que ninguém saiba quem é este frade que não tem parança, de aldeia em aldeia, de lugar em lugar... Sou um ajuntador de imagens que não raro trazem até mim fragmentos de recordações longínquas: o trinco ou a soleira daquela porta em Palmela, a boca desdentada daquela mulher a quem um dia pedi água em Sesimbra, a forma daquele púcaro de barro vermelho ladrilhado de pequeníssimas pedrinhas, na feira de Nisa... Sou um captador de sons que conservo no ouvido: de uma ave que canta, um rio que marulha, a voz de uma pessoa... Sou um olfacteador de cheiros e aromas que perpassam na asa de uma aragem ou de um movimento de corpo. Muito atento sempre, procuro se é possível identificar os novos lugares visitados com lugares que conservo em reminiscência do passado, vozes de pessoas agora encontradas com vozes de outras que ouvi na minha infância. Porque será que é vulgar, quase constante, encontrar postos em mim olhos perscrutadores, mas lábios cerrados. Todavia nada há como os cheiros e o sabor para nos evocarem o tempo escoado: o perfume que se exala da terra depois da primeira chuvada ou o cheiro forte do feno curtido pelo gado, o gosto aromático da ameixa de Elvas ou da laranja sumarenta dos campos de Setúbal...
De todas as terras por onde passava, que conhecia como as palmas das minhas mãos, nenhuma no entanto se igualava à fresca serra de Ossa, em cuja sombra acolhedora muito gostava de me refugiar quando me assaltava a melancolia monástica, estado de espírito que, por meu mal, me era cada vez mais frequente. A minha vida parecia não fazer sentido e, quando eu me fatigava deste contínuo mudar de lugar, passava longos tempos agarrado aos livros a ler e a estudar tudo o que me vinha ao alcance, e muito era, que Évora se tornara um centro muito activo e importante na produção de novidades que doutíssimos sábios constantemente faziam editar.
Diogo, ao contrário de mim, entrava num período de exaltação apostólica e requereu licença para ir missionar às nossas índias Ocidentais. Deixei assim de ter companheiro para as minhas deslocações e um confidente insubstituível das minhas mágoas, dos meus escrúpulos, e um ouvido atento e caridosamente compreensivo das minhas loucuras e da minha irreverência. A última vez que saímos juntos, íamos nós por uma rua da cidade e os sinos de várias igrejas repicavam. Disse-me: vou ter saudades das tuas traquinices, da tua poesia, da tua boa disposição, como vou ter saudades destes sinos e do nosso convento. Nada disso é irremediável, retorqui eu, naquele meu jeito de desarmar a emoção eminente por meio da brincadeira. Encontrarás outro convento e outros irmãos amáveis como eu. E, quanto aos sinos, por todo o mundo, onde quer que estejas, a conversa deles uns com os outros é sempre do mesmo teor. Também eu abandonava de vez Évora, para me dirigir ao nosso Convento de Enxobregas... Évora e Diogo! Encerrava-se um importante período da minha vida, mas outro não menos assinalável se iniciava. Fiz coincidir a minha partida com a de Diogo e uma manhã de acácias, glicínias e laranjais a embalsamarem o ar despedimo-nos do dom Abade, que nos abraçou muito sensibilizado e me rogou com empenhada insistência, dizendo ser serviço de Deus, fizesse caminho pela Arrábida e lhe levasse recado aos nossos irmãos capuchos que lá têm seu eremitério. Acedi com agrado e acompanhei Diogo até Setúbal, donde partia a nau que o havia de levar. Tomei depois pela beira-rio em direcção à serra e pude, durante muito tempo, acompanhar o barco com a vista até desaparecer no horizonte. Fazia tenção de pernoitar no convento, mas a Providência divina dispôs as coisas de outro modo, pois estando aí de visita o seu fundador e protector, o senhor dom João Lancastre, insistiu comigo o acompanhasse a seu paço de Azeitão, onde ao dia seguinte, que era domingo, folgaria muito que lhe dissesse missa, na igreja da terra, que era ao pé. Como não pudesse dizer que não a um tão grande senhor, desci a serra em sua companhia, montado numa azémola que sua senhoria para mim mandou aprestar. Durante o caminho, tinha a bondade de se pôr a meu lado todas as vezes que as veredas, quase sempre estreitíssimas, ladeadas de vegetação cerrada, o consentiam e fazia-me muitas perguntas acerca da minha pessoa. Lembrava-se bem, agora que eu lho recordava, de ter assistido à cerimónia da minha tonsura e quis saber o motivo porque eu havia escolhido um nome tão estranho». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT