quinta-feira, 28 de maio de 2020

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «Foi nos séculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinados de Afonso III (1248-1279) e seu filho Dinis I (1279-1325), que a poesia jogralesca viveu entre nós o período mais florescente»

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Primeiras manifestações teatrais: o arremedilho
«(…) É, de resto, com os jograis que melhor se patenteia a fluidez, a indeterminação de fronteiras entre as diversas manifestações dramáticas medievais, cujo sincretismo a obra de Gil Vicente (e, até, alguns dos seus autos isoladamente considerados: pense-se nas Barcas, por exemplo, ou no Auto da Feira) de maneira tão flagrante ilustra. A própria etimologia da palavra arremedilho insinua que se trataria de uma representação elementar em que a declamação e a mímica se combinavam para tornar mais atraente e persuasiva a fábula contada pelos jograis ao seu auditório popular ou cortês: como que a iluminura animada das novelas ou das canções épicas da Idade Média, na definição expressiva de Oscar de Pratt. Remedadores, com efeito, se chamavam no reinado de Afonso X de Castela (di-lo uma declaração do trovador Guiraut Riquier, de 1275, que os aproximava dos contrafazedores provençais), os jograis especializados na arte de imitar; e uma das Cantigas de Santa Maria, do Rei Sábio, conta a história de um jogral que quis remedar como seja a imagem de Santa Maria, e torceu-se-lhe a boca e o braço. Num dos versos dessa mesma cantiga depara-se-nos o termo remedilho, que Menéndez Pidal define como sendo o espectáculo que dava o remedador. Parece, assim, não haver dúvidas de que estamos perante uma verdadeira manifestação dramática, embora incipiente e rudimentar; e tanto que, em pleno século XVI, o autor da anónima Obra da Geração Humana (Gil Vicente?), na cena introdutória, e Chiado (no Auto da Natural Invenção) designam por arremed(i)ação uma modalidade cénica que, na obra do último, se dá também como sinónimo de comédia, representação, auto ou prática. Foi nos séculos XIII e XIV, e sobretudo nos reinados de Afonso III (1248-1279) e seu filho Dinis I (1279-1325), que a poesia jogralesca viveu entre nós o período mais florescente. Apesar de o regimento da casa real, de 1250, proibir que houvesse mais de três jograis na corte ou jogralesas (denominadas soldadeiras) que não viessem de passagem ou se demorassem mais de três dias, a verdade é que em nenhuma outra época tão grande número de jograis e trovadores deverá ter-se reunido na corte portuguesa, o que autoriza a concluir que as representações de arremedilhos fossem, então, frequentes. Não era, de certo, infundadamente que o jogral João Airas, de Santiago, numa das suas cantigas, aludia às ricas e nobres Cortes que faz el-rei. (Convém esclarecer que o trovador se distingue do jogral por uma condição social e um grau de cultura mais elevados, e está para ele como, na antiguidade clássica, o aedo ou rapsodo relativamente ao mimo e ao histrião. Mas esta distinção, que aliás aparece glosada em várias cantigas de escárneo e mal-dizer, é por via de regra mais teórica do que prática).
Abundam, aliás, nos Cancioneiros dos séculos XIII (Ajuda) e XIV (Vaticana e Biblioteca Nacional) as composições poéticas de esquema dialógico, ou tenções, que um breve tratado de versificação, anexo ao último dos citados Cancioneiros, assim define: outras cantigas fazem os trovadores que chamam tenções, porque são feitas por maneira de razão que um haja contra outro, em que diga aquilo que por bem tiver na prima cobra (isto é, copla) e o outro responda-lhe na outra dizendo o contrário. Estas se podem fazer de amor, ou de amigo, ou de escárneo, ou de mal-dizer. Poderiam multiplicar-se exemplos de tais composições, desde as cantigas de trovadores e jograis como Pedro Meogo, Bernaldo Bonaval, Paio Gomes Charinho, Fernando Esguio, Lourenço, o próprio rei Dinis I, que tomam a forma dum diálogo com o namorado, a mãe, a amiga confidente, às polémicas em verso que aqueles entre si travaram, com a questão do Guarecer por trovar em que intervieram o jogral Lourenço, João Garcia Guilhade, João Aboim, João Soares Coelho e João Vasques. A sua estrutura subsiste no Cancioneiro Geral de Garcia Resende (a querela do Cuidar e Suspirar, o processo de Vasco Abul em que interveio Gil Vicente, a porfia entre o conde de Vimioso e Aires Teles sobre a questão de desejar e bem-querer) e nas éclogas de um Sá Miranda, de um Bernardim Ribeiro ou de um Rodrigues Lobo; seria, no entanto, excessivo qualificar, por essa razão apenas, de dramáticas tais composições». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

Cortesia do ICamões/JDACT