terça-feira, 5 de maio de 2020

Os Cavaleiros de São João Baptista. Domingos Amaral. «Como em muitos casamentos, o arranjo dos lugares era forçado: à entrada da tenda um cartaz anunciava a arrumação dos convidados nas mesas…»

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A Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«Como um tubarão. O homem atravessara a enorme tenda onde decorria o casamento com a majestade, a força e o silêncio de um tubarão. A curiosa, e feliz, definição pertencera ao professor Bernardino. É certo que existiam diferenças de pormenor: não mordera ninguém, apenas apertara algumas mãos e sorrira uma ou outra vez, um sorriso duro e frio. Quando ele chegou, atrasado, alguns dos presentes tinham já comido a sopa, aguentou duzentos pares de olhos cravados nele, como se o temessem, e dirigiu-se de facto à sua mesa, com uma lentidão calculada, uma potência presa, mas pronta a disparar, que se assemelhavam às do grande terror dos mares. Sentada ao lado de João Pedro, Inês comentou: sempre a dar espectáculo. O doutor Marcos Portugal nunca vai aprender, pois não? Olhou para João Pedro, como que procurando a sua aprovação. Em frente dela, o professor Bernardino, um senhor imenso, de barba e bigode claros e farfalhudos, lembrando um viking, sorrira. É demasiado tarde para um tubarão da idade dele... A João Pedro nunca lhe ocorrera definir assim o seu patrão. Mas reconhecia pertinência à ideia. O dr. Marcos Portugal tinha reputação de ferocidade. E não andava: movia-se, silenciosamente, inconsciente do estranho temor que provocava nos convidados da festa. Nesse momento, acabara de sentar-se na sua mesa, e João Pedro reparou na mulher, loira e deslumbrante, que seguia Marcos Portugal a alguma distância, e agora se sentava a seu lado.
Parece uma estátua de silicone, resmungou o pintor Afonso, na sua voz efeminada. As estátuas não andam... Este reparo viera de Raulzito, ou o meu Raulzito, como o pintor Afonso o apresentara, provocando alguns sorrisos. O moderno casal estava destinado à mesa de João Pedro, bem como o casal Bernardino, a esposa era o oposto dele, mínima e franzina, e duas sexagenárias, dona Laurentina Nóbrega e dona Natália Alvarinho. Compunham a dezena João Pedro, Inês e Francisco, amigo destes últimos. A cadeira vaga estava destinada a uma terceira amiga, Mariana.
Como em muitos casamentos, o arranjo dos lugares era forçado: à entrada da tenda um cartaz anunciava a arrumação dos convidados nas mesas, baptizando-as com nomes de cidades portuguesas. A deles era a mesa Tomar, a cidade templária, comentara o professor Bernardino, que se apresentara como lente de História, acrescentando que a cidade deles era a dos monges guerreiros, das cruzes de Cristo e dos segredos da Ordem dos Templários. Porém, talvez indiferentes à história da cidade, nenhum dos presentes pegara na deixa, nem mesmo aquando da declaração do professor Bernardino de que talvez o mundo precisasse de novos cruzados, capazes de lutarem contra os fundamentalistas do Islão, como faziam os Templários.
É toda trabalhada, toda reconstruída, reforçou o pintor Afonso, referindo-se à loira e ignorando o comentário do seu Raulzito. Peitos, lábios, até as bochechas da cara! Mas o jovem é contra as plásticas? Por momentos, um incómodo silêncio pousou sobre a mesa. A autora da pergunta era uma das sexagenárias, a mais distinta, dona Laurentina Nóbrega. Pelos vistos com legitimidade para dissertar sobre cirurgias plásticas. Achava que já ninguém pensava assim... O pintor Afonso empalideceu. Não estava habituado a ver contestadas as suas apreciações estéticas. E muito menos por uma senhora mais velha que, com uma frase apenas, o colocara no desconfortável papel de cró-magnon social.
Fiz várias plásticas e não estou arrependida, continuou dona Laurentina, trincando com delicadeza uma gamba e sorrindo. Pois não, Natália? À sua direita, a amiga depenicava também uma gamba com gosto, e abanou a cabeça, confirmando a veracidade da declaração». In Domingos Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN 978-989-660-373-1.

Cortesia de Leya/BIS/JDACT