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A
Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«Como um tubarão. O homem atravessara
a enorme tenda onde decorria o casamento com a majestade, a força e o silêncio de
um tubarão. A curiosa, e feliz, definição pertencera ao professor Bernardino. É
certo que existiam diferenças de pormenor: não mordera ninguém, apenas apertara
algumas mãos e sorrira uma ou outra vez, um sorriso duro e frio. Quando ele
chegou, atrasado, alguns dos presentes tinham já comido a sopa, aguentou
duzentos pares de olhos cravados nele, como se o temessem, e dirigiu-se de facto
à sua mesa, com uma lentidão calculada, uma potência presa, mas pronta a disparar,
que se assemelhavam às do grande terror dos mares. Sentada ao lado de João
Pedro, Inês comentou: sempre a dar espectáculo. O doutor Marcos Portugal nunca vai
aprender, pois não? Olhou para João Pedro, como que procurando a sua aprovação.
Em frente dela, o professor Bernardino, um senhor imenso, de barba e bigode
claros e farfalhudos, lembrando um viking, sorrira. É demasiado tarde para um
tubarão da idade dele... A João Pedro nunca lhe ocorrera definir assim o seu
patrão. Mas reconhecia pertinência à ideia. O dr. Marcos Portugal tinha reputação
de ferocidade. E não andava: movia-se, silenciosamente, inconsciente do estranho
temor que provocava nos convidados da festa. Nesse momento, acabara de sentar-se
na sua mesa, e João Pedro reparou na mulher, loira e deslumbrante, que seguia Marcos
Portugal a alguma distância, e agora se sentava a seu lado.
Parece uma estátua de silicone, resmungou
o pintor Afonso, na sua voz efeminada. As estátuas não andam... Este reparo viera
de Raulzito, ou o meu Raulzito, como o pintor Afonso o apresentara, provocando
alguns sorrisos. O moderno casal estava destinado à mesa de João Pedro, bem
como o casal Bernardino, a esposa era o oposto dele, mínima e franzina, e duas sexagenárias,
dona Laurentina Nóbrega e dona Natália Alvarinho. Compunham a dezena João
Pedro, Inês e Francisco, amigo destes últimos. A cadeira vaga estava destinada a
uma terceira amiga, Mariana.
Como em muitos casamentos, o
arranjo dos lugares era forçado: à entrada da tenda um cartaz anunciava a arrumação
dos convidados nas mesas, baptizando-as com nomes de cidades portuguesas. A deles
era a mesa Tomar, a cidade templária, comentara o professor Bernardino, que se apresentara
como lente de História, acrescentando que a cidade deles era a dos monges guerreiros,
das cruzes de Cristo e dos segredos da Ordem dos Templários. Porém, talvez indiferentes
à história da cidade, nenhum dos presentes pegara na deixa, nem mesmo aquando da
declaração do professor Bernardino de que talvez o mundo precisasse de novos
cruzados, capazes de lutarem contra os fundamentalistas do Islão, como faziam os
Templários.
É toda trabalhada, toda reconstruída,
reforçou o pintor Afonso, referindo-se à loira e ignorando o comentário do seu Raulzito.
Peitos, lábios, até as bochechas da cara! Mas o jovem é contra as plásticas? Por
momentos, um incómodo silêncio pousou sobre a mesa. A autora da pergunta era
uma das sexagenárias, a mais distinta, dona Laurentina Nóbrega. Pelos vistos com
legitimidade para dissertar sobre cirurgias plásticas. Achava que já ninguém pensava
assim... O pintor Afonso empalideceu. Não estava habituado a ver contestadas as
suas apreciações estéticas. E muito menos por uma senhora mais velha que, com uma
frase apenas, o colocara no desconfortável papel de cró-magnon social.
Fiz várias plásticas e não estou
arrependida, continuou dona Laurentina, trincando com delicadeza uma gamba e
sorrindo. Pois não, Natália? À sua direita, a amiga depenicava também uma gamba
com gosto, e abanou a cabeça, confirmando a veracidade da declaração». In Domingos
Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN
978-989-660-373-1.
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