Cortesia
de wikipedia e jdact
«Tomei
o comboio na estação de Castanheira, depois que o Calhau deixou de me abraçar.
Foi ele que me trouxe no carro de bois de dona Estefânia, em cuja casa, como se
sabe, me talharam o destino. Minha mãe veio ainda à igreja, pela madrugada,
ver-me partir; mas sentindo-me tão distante como se eu fosse preso, como se eu
já pertencesse a um mundo que não era o seu, mal me falou. Por seu lado, dona
Estefânia, defendendo a gravidade até ao último instante, olhando a minha mãe
do alto das conveniências, disse-me brevemente que fosse na paz de Deus, e desapareceu.
Sozinhos no carro, Calhau abismava-se no grande silêncio da manhã. Apenas de
vez em quando, emergindo da solidão, mas fixo ainda na radiação de tudo, dizia
coisas naturais da terra e das sementes, ou perguntava de novo a que horas era
o comboio.
Às nove, respondia eu. Chegamos a
tempo. E outra vez se calava, de capote às orelhas, sentado na borda do carro,
com as pernas suspensas. Mas logo depois murmurava de novo: tens sorte. Olha eu
que nunca pus os pés num comboio. Já o vi três vezes com esta. Mas nunca lá pus
os pés. Tens sorte. A névoa da madrugada desprendia-se dos campos, ia
envolvendo a montanha. Dobrado de frio, o queixo nos joelhos, a saca da roupa
ao lado, eu sentia-me quase feliz, mas de uma estranha felicidade inquietante. Perturbavam-me
de prazer a trepidação da partida, o halo da novidade e sobretudo o apelo intrínseco
e doce de todas as pequenas coisas que ficavam mais perto de mim, como o fato
novo, estreado esse dia, e o farnel da merenda para comer no comboio. Fechado
nestas quimeras, eu calava-me também, como se com o silêncio me defendesse de
tudo o que era ameaça à minha roda. Porque tudo para mim era estranho e ameaçador,
desde a montanha imóvel na enorme manhã circular até ao espectro do Calhau e
dos bois, tão insólitos na sua placidez inicial, como se viessem carregando o
carro, submissamente, através de longos séculos...
Afinal chegámos meia hora antes
do comboio. De modo que, aproveitando esse bónus de espera, Calhau e eu
pusemo-nos a estudar as linhas, os vagões nos desvios, a engrenagem das
agulhas. Como achava tudo aquilo maravilhoso, estranhei que o Calhau só três
vezes tivesse visto o comboio. Há pior, disse-me ele, sossegado. Conheces a Felícia?
Pois é mais velha do que eu e nunca o viu. E aqui tão perto!, admirei-me eu,
condoído. Mas Calhau não se perturbou, convencido, decerto, de que isso de ver
comboios não era assim muito importante para a vida. Um homem fardado veio à
plataforma dar avisos de corneta, uma inquietação nova centrou a atenção de
todos. E, bruscamente, entre dois grandes penhascos, o comboio rompeu enfim
como um rancor subterrâneo, alucinado de ferros e fumarada. E tive medo. Pela
primeira vez estremeci de medo até aos limites da vida, não tanto, porém, da fúria
do comboio, como dessa coisa insondável e enorme, tão grande para mim, que era
partir. E então desejei ardentemente, profundamente, ficar. Mas era tarde: tudo
quanto eu tinha feito desde há meses, tudo quanto fizera dona Estefânia,
conduzia justamente àquilo mesmo, partir. Por isso, apertado de amargura, ameaçado
de lágrimas, fui-me deixando abraçar em silêncio pelo Calhau. Até que, por
entre um furor de fardos e cabazes, lá rompi, de saca às costas, para a carruagem
de terceira. Fechei a porta, apanhei ainda o último adeus do Calhau e sentei-me
então para chorar quanto quisesse. Em verdade, eu não gostaria de chorar. Mas,
espoliado abruptamente da minha infância, aturdido de solidão, sentia-me quase
bem dentro do choro.
Inesperadamente, por entre a
minha dor, eu descobria em mim o aceno de um passado. Era a grande montanha a
oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor
original de uma alegria morta. E então voltei para lá a minha face molhada, e
tudo em mim disse adeus longamente. Logo encontras colegas, declarara dona
Estefânia ao meu alarme. E, realmente, pouco depois, eu reparei que na
carruagem já vinham dois fatos pretos. Batidos pelos olhos de toda a gente do
comboio, logo nos unimos em defesa e tentámos confraternizar. Isso animou-me
bastante. Mas quanto me custava suportar o olhar filado, os sorrisos malignos
da matula da terceira, que se me cravavam nos flancos como dentes carniceiros.
Até que um malandro, que vinha de púrria com seis magalas, decidiu morder de
frente. E disse alto: padreca! Ó padreca!
Sofri. Olhámo-nos os três,
congregando a coragem, mas logo vimos que não tínhamos que chegasse. E então
odiei. Pela primeira vez na vida me cerrei dentro do meu ódio impotente e
infeliz, e aprendi o sentido do desespero e da morte. Pela primeira vez eu medi
a minha distância do mundo que me havia de ficar para sempre distante. Calados,
destruídos de peste, para ali ficámos, sufocados de vergonha, pedindo paz com
sorrisos corados para a matula carnívora, detestando-nos surdamente uns aos
outros, como se cada um de nós fosse afinal o culpado...
Com a secreta esperança de que
nas paragens do comboio nos surgissem reforços, eu ia pelas janelas
esquadrinhar o movimento das estações. De facto, não me enganei. Em dada
altura, por entre a barafunda de uma estação agitada, lá cacei um fato preto. Prà
qui!, berrei. Prà qui! Mais um. Como era já aluno adiantado, trouxe-nos o
conforto da sua experiência. Dissemos os nossos nomes, não perguntámos o dele,
submissos e radiantes. Logo depois, num apeadeiro solitário, mais outro fato
preto. Prà qui!, clamei de novo, mais forte. Cinco. Já não era mau. Mas eu não
desistia de engrossar as nossas hostes e, de janela em janela, lá recrutei mais
sete. Pude enfim descansar. Fitei, desassombrado, os galuchos, e pareceu-me então
que eles cediam terreno por falarem já só com os olhos». In Vergílio Ferreira, Manhã Submersa,
1954, Quetzal Editores, 2011, ISBN 978-972-564-740-0.
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