domingo, 10 de maio de 2020

A Maldição de Afonso II. Maria Antonieta Costa. «Ficará bem entregue, acabou por concordar o chanceler. E ficaria igualmente bem se o baptizassem Jorge. Pois sim, mas esse, se bem que é nome de santo, não é nome de rei. Será Afonso…»

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«(…) Não me parece… Já receberam muitas benesses, depreciou o monarca. Esses que referistes têm sido bastante premiados e estou seguro da sua fidelidade. Além disso, como teriam tempo de se ocupar da educação do infante se me acompanham em todas as guerras? Meu pai desbravou bastante, mas eu ainda tenho outro tanto para conquistar. Penso em alguém que esteja completamente disponível para acompanhar o meu filho todos os dias e que, ao mesmo tempo, tenha dado provas de ser competente. Desse modo..., será difícil. Não me ocorre quem... Mas ocorre-me a mim. Irá para os de Riba de Vizela. Ficará bem entregue a dom Mendo Pais, o meu fiel aio, aquele que melhor me preparou para o meu ofício. Senhor, sem desmerecer a vossa escolha, permito-me lembrar duas coisas: que dom Mendo está velho e cansado e até que ponto terá interesse político manter ligação com a linhagem do vosso antigo protector...
Caro dom Julião, não procuro essa contrapartida, mas sim outra, muito mais eficaz: que o próximo monarca deste reino seja, senão melhor, pelo menos tão excelente guerreiro como os dois antecessores. Quanto ao resto, a velhice traz a sabedoria e a experiência que os novos não possuem. Na verdade, senhor, sois exímio no manejo das armas e arguto na escolha das táticas! Pois foi ele quem me ensinou. Portanto, o meu primogénito será criado em casa de Mendo Pais. Seguirá. para lá logo que dê os primeiros passos. Esperemos que cresça bravo o suficiente para completar a reconquista e acrescentar melhores terras.
Ficará bem entregue, acabou por concordar o chanceler. E ficaria igualmente bem se o baptizassem Jorge. Pois sim, mas esse, se bem que é nome de santo, não é nome de rei. Será Afonso, como o avô, o senhor que unificou este pequeno canto repleto de serranias e penedos. Será ele que, depois de mim, conquistará as terras baixas do Sul. Vereis como dom Mendo o treinará de feição para expulsar esses mouros que tanto nos afligem.

O pequeno príncipe foi levado para longe do Paço Real da Alcáçova no final do segundo ano de vida. Dom Mendo recebera a ordem para educar o herdeiro do trono como a sua última tarefa política, acolhendo-o no seio familiar ainda mal articulava as primeiras falas. As linhas mestras que o vassalo seguia eram as mesmas com que formara o seu pai: fortalecer o ânimo, desenvolver o exercício bélico, ensinar o valor da palavra jurada e da obediência religiosa, porque ninguém quereria obedecer a um rei excomungado. Como conteúdo das lições, o nobre utilizava as armas, os jogos militares, a diplomacia, o gosto pelo risco, o sentimento de honra e o culto da lealdade, em detrimento das disciplinas intelectuais do Trivium e do Quadrivium. Um príncipe tinha de ser treinado, sobretudo, nas artes da guerra e nas maquinações políticas.
Dos cinco aos sete anos, o infante aprendera a montar e recebera alguns rudimentos de leitura do capelão do domínio senhorial. Pelos doze, iniciara-se no manejo da espada e da lança, na caça de montaria e falcoaria e na poesia trovadoresca para melhor satisfazer o progenitor, que se aventurava pela escrita de cantigas de amigo. Entrara ao serviço, de dona Onega, esposa dedicada de dom Mendo, como pajem, a fim de adquirir a polidez necessária ao trato com as mulheres. Praticar a arte de donear era o requisito essencial para exaltar o prez (mérito) e a bondade. Assim, passara a conviver com as damas que a rodeavam, as mais novas já com a idade de sua mãe.
Vivendo em terras longínquas, pelos domínios de Urgezes e de Vizela, de vez em quando deslocava-se ao Paço de Coimbra, a fim de visitar a progenitora e os irmãos entretanto nascidos. Até que dona Dulce falecera, algum tempo após o nascimento das suas irmãs gémeas, esgotada por tantos partos consecutivos. Com o pai, tinha poucas oportunidades de encontro, já que andava em campanha. Entretanto, iniciara a aprendizagem de escudeiro. Passara a cingir a espada, a participar em justas e torneios, a acompanhar os cavaleiros em algumas surtidas leves e nas caçadas, enquanto na copa aprendia a trinchar e, na estrebaria, a tratar do seu cavalo. Numa sociedade dominada pelos valores da guerra e da religião cristã, dom Afonso estava a ser convertido pela educação num monarca à imagem de seu pai, num homem de armas cuja espada estaria ao serviço do reino e da fé». In Maria Antonieta Costa, A Maldição de Afonso II, 2019, Clube do Autor, 2019, ISBN 978-989-724-483-4.

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