sexta-feira, 29 de maio de 2020

Barco da Carreira dos Tolos. 1850. Obra Crítica, moral e Divertida. José Daniel Rodrigues da Costa. «O outro dia foi huma Saloia alli de Camarate procurar me, dizendo-me que se casava, e que se queria refazer de algum fatinho mais aceado, e sem escrúpulo»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original!

Carreira dos Tolos. Modistas
«(…) Aqui o Arrais compadecido da pobre Velha, e achándo-lhe alguma razão, mandou que entrasse para o Barco-, e com demora de cinco minutos chegou huma Adela, perguntou pelo Arrais, e dando com elle, lhe fallou deste modo: senhor Arrais, aqui venho para fazer viagem na sua Carreira, porque não há huma mulher mais tola do que eu : tenho passado a minha vida na occupação de Adela, tenho ganho muito dinheiro, e vejo-me pobre, como Job. Para eu ver se a sua tolice está no seu auge, lhe respondeo o Arrais, quero saber porque motivo ganhou esse dinheiro, o porque motivo se vê sem elle? Eu, senhor Arrais, lhe replicou a Adela , darei conta de todos os estratagemas, que por mim tem passado nisto de vender fatos alheios, alborcar fatos, e comprar fatos.

O anno passado vendi trinta e dois vestidos de Senhoras, de veludo preto, aos armadores para armações de Igreja, que he hoje só a applicação, que lhes dão, vendidos a doze vinténs o covado: isto então huma fazenda, que custou certamente a meia moeda. Eis-ahi, lhe disse o Arrais, huma desordem causada pelas modas, que abandonão sempre as cousas de valor, para abraçarem trezentas canquilharias. A semana passada, continuou a Adela, vendi oito mantos de huma bella seda em bom uso; e soube que suas donas com o dinheiro delles forão logo comprar chapelinhos do Sol de sete mezinhos, a medalhas para se mostrarem pelas ruas de Lisboa. Tive em minha casa dois caixões cheios de saias de grodetú, que ninguém olhava para ellas: tinha quatro dúzias de aventaes lizos , e bordados, finos, e grossos, que não sabia o fim, que lhes havia de dar: tinha vinte capas de panno fino, tudo dentro do mesmo caixão. Eis senão quando; hum genro que tenho, levado do demo, pilhou-me fora, e roubou-me; e ainda cahi na tolice de o metter outra vez em casa.

O outro dia foi huma Saloia alli de Camarate procurar me, dizendo-me que se casava, e que se queria refazer de algum fatinho mais aceado, e sem escrúpulo. Dei logo parabéns á minha fortuna, assentando comigo que sáias, capas, aventaes, e roupinhas terião alli alguma sahida. Vou ao caixão, e foi então quando não achei, nem hum fio, porque o maroto de meu genro tudo tinha abafado. Ainda mostrei algum fatinho á saloia, que tinha em outro sitio, e cómmodos nos preços; porém ella a tudo cuspio, e a tudo fez focinho, e descarta-se me, dizendo: V. m. julga-me alguma bruta? vá lá para o meu lugar, e verá o que por lá acha! Eu quero fato da moda; se me lá vissem com isto, corrião-me á pedrada: eu quero algum vestido branco bordado, franzido, quasi sem cintura, e sem mangas; quero hum chalé, que tenha ao menos duas varas de largo, e de comprido; quero huma barretina com véó. E finalmente entra a boa da Saloia a fazer-me huma pintura como lá dizem, de tremer». In José Daniel Rodrigues da Costa, Barco da Carreira dos Tolos, Obra Crítica, Moral e Divertida, RB196984, University of Toronto, Typographia de Elias José Costa Sanches, Lisboa, 1850.

Cortesia de T. Sanches/JDACT