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Fundação. Sábado, 16 de Junho de 2002
«(…) Durante alguns minutos, à
volta da mesa ninguém piou. O pintor Afonso e o seu Raulzito digeriam a afronta,
trincando as gambinhas com raiva, e dona Laurentina e dona Natália mastigavam contentes,
orgulhosas da sua pequena vitória. Foi então que o professor Bernardino, talvez
para quebrar o gelo e depois de limpar os bigodes com o guardanapo, levantou o copo
de vinho branco, Quinta de Camarate, e proclamou: um brinde!
Inês e Francisco levaram as mãos
aos copos, aliviados pelo fim da tensão. O mesmo fez a mulher do professor
Bernardino. Quanto ao pintor Afonso, não reagiu, amuado, sendo imitado pelo solidário
namorado. Com um sorriso trocista, mas sem pegar no copo, Laurentina perguntou:
e brindamos a quê? Ao silicone ou às estátuas? O professor Bernardino retribuiu
o sorriso e explicou: aos tubarões, sem os quais não existiria polémica no
mundo! João Pedro, cujo desconforto era visível, não levantou o copo. E, já agora,
um brinde às gambas, sem as quais não teríamos assistido a outro espectáculo
único..., acrescentou o professor, provocando o regresso dos sorrisos às caras do
pintor e do seu Raulzito.
Uns vinte minutos antes, o professor
Bernardino desenvolvera a teoria do buffet etíope. Segundo ele, em todos
os casamentos, a grande maioria dos portugueses comportava-se como etíopes esfomeados
rodeando os camiões da ajuda humanitária. Atacam com fúria o buffet! Vejam por exemplo
as gambas. Estão ali dispostas com beleza, como uma monumental pinha, um
ex-líbris da estética alimentar, e são atacadas por uma turba de gente, bem
vestida mas esfomeada, que em poucos minutos se atropela, numa luta corpo a corpo
por uma cabecinha de gamba, enchendo o prato como se nunca mais, nos próximos dez
anos, pudesse voltar a provar tais iguarias! Alguns dos presentes não tinham ouvido
a sua tese, havia sido o caso de dona Laurentina e de dona Natália, na altura a
empilharem gambas no prato, não compreendendo o motivo do último brinde.
Prefere então o tubarão ao camarão?,
perguntou Laurentina, fina de espírito e desconfiada. Prefiro, disse o professor
Bernardino. Sou solidário com tudo o que tenha tamanho em excesso... Ouviu-se uma
voz, quase um murmúrio: Laurentina, isto são gambas... Houve risos à volta da mesa.
O pintor Afonso, aliviando o seu amuo, perguntou: mas conhece este tubarão? Para
desagrado de João Pedro, a conversa regressava à figura do dr. Marcos Portugal.
O professor Bernardino olhou na direcção do famoso advogado e disse: só dos jornais
e das revistas. Divertida, Inês colocou João Pedro no centro das atenções: o único
que o conhece bem é o João Pedro. A mesa esperou um esclarecimento. Mas João Pedro
fez-se desentendido. O João Pedro é advogado no escritório do doutor Marcos Portugal,
trabalha para ele..., insistiu Inês.
Em redor, olhares de desaprovação.
Pela amostra, o dr. Marcos Portugal não ganharia concursos de popularidade. Tinha
fama de trauliteiro e ambicioso, capaz de vender a própria mãe. Mas nessa apreciação
social existia muita ambiguidade e má consciência, pois o dr. Marcos Portugal era
um especialista em off-shores, uma espécie de guru nacional da fuga ao fisco.
Muitos dos que em público o criticavam, usavam depois os seus serviços em
privado, para melhor acautelarem as suas fortunas da gula das Finanças. Anda
então a treinar-se para tubarão?, provocou o professor Bernardino». In Domingos
Amaral, Os Cavaleiros de São João Baptista, 2004, Leya, BIS, 2015, ISBN
978-989-660-373-1.
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