sexta-feira, 1 de maio de 2020

Os Judeus do Papa. Gordon Thomas. «Depois daquilo, Pacelli também fizera arranjos para que vários outros judeus eminentes, académicos, médicos e cientistas imigrassem para os Estados Unidos...»

Cortesia de wikipedia e jdact

Uma maneira de morrer
«(…) Numa vida de viagens, quando Pacelli retornava a Roma, sempre fazia questão de se encontrar com os seus amigos judeus. Cada vez mais eles o questionavam sobre o tratamento dado aos judeus, e ele lhes dizia o que havia visto e ouvido lhe doía, prometendo que lutaria contra o antissemitismo com todas as forças que possuía. A sua autoridade havia atingido o cume quando Pacelli fora nomeado secretário de Estado em 1930. Ele convidara Mendes e os seus outros amigos judeus para participar da cerimónia e depois os apresentara a Pio XI. Naquela que se tornaria a última conversa antes de o papa falecer, Pacelli lhe havia dito que agora a família Mendes estava em segurança na Palestina. Até um ano atrás, Guido era professor da escola de medicina da Universidade de Roma, mas as leis raciais antissemitas de Mussolini levaram a sua demissão. Pacelli imediatamente pedira ao ministro britânico da Santa Sé, sir D’Arcy Osborne, que providenciasse para a família uma permissão de entrada na Palestina, naquela época sob mandato britânico. A presteza de Osborne em ajudar gerou uma amizade duradoura com Pacelli.
Depois daquilo, Pacelli também fizera arranjos para que vários outros judeus eminentes, académicos, médicos e cientistas imigrassem para os Estados Unidos, América do Sul e outros países. Fizera arranjos para os que não poderiam sair de Roma por motivos familiares, uma esposa gravemente doente ou um filho ou filha em algum ponto crucial da educação, fazendo que assumissem cargos dentro do Vaticano. Entre eles estava um dos melhores cartógrafos do mundo, Roberto Almagia, que produziu uma monografia sobre a Terra Santa. Desde as leis racistas, Pacelli havia encontrado cargos para vinte e três académicos judeus na Pontifícia Universidade Gregoriana, na Academia de Ciências e na Biblioteca do Vaticano. No seu leito de morte, o papa Pio XI havia falado da necessidade de Pacelli continuar a sua campanha contra o antissemitismo. Um dos médicos de plantão se lembraria de que Pacelli estava próximo às lágrimas quando o papa dissera que ele teria de continuar a ser um defensor do povo judeu.

As freiras haviam completado o seu trabalho e murmurando as palavras tradicionais: ó, Senhor, trago a ti meu louvor… Em baixo, na praça, havia o som do trânsito e da polícia montando barreiras para controlar a multidão crescente que se reunia para guardar luto pelo falecimento do papa. Pacelli avaliava o momento de se aproximar da beira da cama. As emoções causadas pela morte já invadiam os ares do quarto. A face das duas freiras estava tomada de luto, suas vozes eram emotivas durante as orações. Além da janela, os primeiros raios de sol do dia passaram acima do límpido Tibre para tocar a cruz do topo da basílica de São Pedro. O volume das orações que chegavam da praça aumentava. Pacelli adentrou o quarto, parando apenas para as freiras saírem. Ficou ao lado da cama e fez a sua própria oração.

Assim que a alvorada começou a iluminar os céus do lado de fora da janela do quarto, Pacelli soube que, antes de poder iniciar os preparativos para o funeral e solucionar milhares de questões até que o novo papa pudesse ser eleito no conclave, deveria desempenhar a sua primeira obrigação na condição de camerlengo. Removeu o Anel do Pescador do dedo anular direito do papa. Mais tarde ele usaria uma tesoura grande de prata para quebrar o anel em frente ao Colégio de Cardeais reunido antes de entrarem no conclave. Assim que um novo papa fosse eleito, receberia o seu novo anel, mais um símbolo de sua autoridade. Pacelli se prostrou sobre o corpo e beijou-lhe a testa e as mãos antes de sair do quarto, fechando a porta atrás de si». In Gordon Thomas, Os Judeus do Papa, Casa das Letras, 2012, ISBN 978-972-462-137-1.

Cortesia de CdasLetras/JDACT