(1892-1958)
Figueira da Foz
Cortesia de almocrevedaspetas
Joaquim de Carvalho formou-se em Direito e em Letras (1916). Foi professor de Filosofia Moderna na Universidade de Coimbra. Alcançou grande projecção nacional como um excelente historiador de ideias, em particular da ciência e dos pensadores portugueses. Um dos seus projectos era justamente o de escrever a História da Filosofia em Portugal. No inicio foi influenciado pelo neokantismo da escola de Marburgo e depois pelo pensamento de Espinosa, acabando por se centrar em algumas questões tipicamente portuguesas, como o conceito da saudade. Joaquim de Carvalho, inspirando-se em Hegel, parte do pressuposto que cada povo, superando a sua realidade concreta, tem a sua própria maneira de se exprimir em termos filosóficos utilizando os seus próprios conceitos.
A palavra «saudade» é uma das mais difíceis de traduzir em todo o mundo, porque possui uma significação algo complexa. Data do século XV, a primeira tentativa de definir esta palavra que conforme já então se dizia não tinha correspondência noutra língua qualquer. «Saudade», diz o rei D. Duarte, é o «sentido do coração que vem da sensualidade e não da razão» (Leal Conselheiro, cap. XXV). A saudade é assim algo que é de natureza sentimental antes de ser consciente ou racional. Em geral podemos traduzir a saudade como um apelo sentimental de união com algo ausente, distante ou perdido.
Ao longo dos séculos a «saudade» tornou-se um tema literário recorrente em Portugal. No princípio do século XX, adquire todavia uma dimensão pretensamente filosófica. O momento decisivo ocorreu logo após o derrube da monarquia em Portugal (1910). No ano seguinte formou-se um movimento cívico- a «Renascença Portuguesa»- que que assume como objectivo impulsionar através de uma ampla acção o renascimento da cultura portuguesa, partindo do pressuposto que o país havia entrado numa total decadência. Este movimento onde sobressaiam intelectuais como Teixeira de Pascoaes, Leonardo de Coimbra, Fernando Pessoa, António Sérgio e muitos outros, desdobra-se em muitas acções de intervenção social e cultural: publicam livros, folhetos, organizam conferências, editam um jornal Águia e até organizam uma Universidade Popular. A verdade é que rapidamente começa a emergir uma corrente de característica nacionalistas, cujo principal mentor é Teixeira de Pascoaes. O seu ideário é extremamente simples: a cultura portuguesa tem uma dimensão universal intrínseca, e esta só pode ser apreendida desvelando a própria língua portuguesa e em última instância compreendendo o modo de ser português. Afirmam, por último que alguns conceitos portugueses não são susceptíveis de serem traduzidos em qualquer outra língua. O mesmo é dizer só os portugueses são capazes de os entenderem. A palavra «saudade» torna-se o símbolo e a melhor expressão desta corrente nacionalista. Fernando Pessoa e António Sérgio não tardam a afastar-se da Renascença Portuguesa.
As ideias de Teixeira de Pascoes acabaram por ter larga influência num numeroso grupo de poetas, como Afonso Lopes Vieira, António Patrício, Domingos Monteiro e Florbela Espanca, que irão desenvolver a temática da saudade.
«Uma das últimas expressões deste movimento, ocorreu nos anos 40, em plena II Guerra Mundial, no auge nos regimes totalitários emerge um grupo de intelectuais reclamando um matriz nacional para filosofia e para a filosofia feita em Portugal. A questão foi colocada por Álvaro Ribeiro, em 1943, no opúsculo «Problema da Filosofia Portuguesa», onde afirma o enraizamento da filosofia na história, na língua e na cultura onde emerge. Esta ideia é de imediato trabalhada por outros pensadores portugueses, como José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros, António Telmo, Cunha Leão, Orlando Vitorino, Pinharanda Gomes e muitos outros, que passam a falar de uma natureza especifica para a filosofia em Portugal. A palavra saudade, mais uma vez, torna-se num objecto de culto deste movimento, dando origem a importantes desenvolvimentos poético-filosóficos. A maioria interpreta-la segundo uma perspectiva tradicional, mas alguns apontam para novos horizontes. Todos estão todavia envolvidos nas mesmas temáticas «nacionais», esquecendo-se frequentemente no mundo mais amplo onde também vivem. A generalidade das ideias destes pensadores, espelha um forte enraizamento ideológico num ambiente fechado e provinciano como foi aquele que Portugal viveu durante a ditadura». In Carlos Fontes.
Com a devida vénia ao filósofo Joaquim Carvalho, publico o texto «Elementos Constitutivos da Consciência Saudosa e Problemática da Saudade» segundo a visão de Liliana Santos.
Cortesia de arepublicano
Elementos Constitutivos da Consciência SaudosaJoaquim de Carvalho, filósofo coimbrão, escreveu esta obra com o intuito de fazer a descrição fenomenológica da consciência saudosa, a especificidade e o conteúdo da saudade. Para o autor existem 3 hipóteses para a origem do sentimento saudoso, inclinando-se mais para a terceira (será um sentimento que pode ser vivido por todos os homens?), porque é enquanto sentimento universal que a saudade pode assumir diferentes formas (tristeza, nostalgia, melancolia…). A consciência saudosa tem alguns problemas (cada um com factos e objectivos diferentes), nomeadamente da psicologia étnica, descrição psicológica, interpretação metafísica e história literária. Ao longo da obra, o autor, tenta responder á pergunta “O que é próprio da consciência Saudosa?”.
A saudade é analisada, por Joaquim de Carvalho, pelo método fenomenológico (corrente filosófica que pretende descobrir as estruturas transcendentes da consciência e as essências) porque é preciso examinar a essência da saudade, o que está para além da exteriorização da mesma. O autor não procura o que é ser saudoso porque remete para o presente (que pode ser infinito), analisa, antes, o que o sentimento da saudade tem em cada um de nós (porque cada um tem saudade das suas próprias experiências). Podemos ter o sentimento da saudade, mas não é um conhecimento que possa vir a ser científico porque, é íntima, subjectiva, pessoal, comunicável, intransmissível, em tudo diferente da ciência que é objectiva, impessoal e universal. A saudade define-se por um estado que se constitui a partir de uma situação presente, mediante a representação de entes ausentes ou de experiências vividas, ou imaginadas, no passado. Assume diversas características. É um sentimento evocativo; triste; melancólico; subjectivo; embora seja comunicável, é intransmissível (porque é um estado psíquico); é exclusivamente humano. O sentimento saudoso não permite remorsos porque, sentir saudade não é sentir-se culpado do que quer que seja. A intensidade da saudade varia na medida em que se opõem as qualidades e propriedades afectivas da presentação às da representação. As condições essenciais e indispensáveis á saudade são as de ter vivido a experiência e a de conservar um núcleo de representações ligadas emotivamente entre si.
O sentimento da saudade esmaga todas as virtualidades da relação presente entre a consciência e o mundo nela representado. Nasce do contraste entre duas representações da realidade. A que é dada pela percepção actual (a realidade que se vive), presente e desvalorizada; e a do passado, dada pela evocação retrospectiva (a realidade que se viveu), alguns momentos afectivamente privilegiados. O contraste entre essas duas realidades estabelece como que a medida da perda que se sofreu e se desejaria recuperar.
A «evocação», feita pela realidade passada, é a representação da ausência como perda ou privação que requer que não se captem qualidades com dimensões afectivas no objecto da percepção actual, porque não se tem saudades de objectos mas da relação afectiva com eles desenvolvida, embora a saudade não possa ser despertada sem a presença de objectos desprovidos de qualidades, e a falta dessas qualidades vai conduzir à saudade juntamente com o desejo de reviver com actualidade. Perante isto, a consciência saudosa não toma posição teorética, ou seja, não se exprime por juízos existenciais a partir de dúvidas, nem se exprime por decisões. A posição saudosa é ensimesmada e contemplativa. No acto saudoso o ensimesmar-se e o exsimesmar-se têm a mesma finalidade porque a retroversão sobre si mesma não é vaga, dirige-se e constitui-se por representações cheias de emoções.
Sente-se saudade dos acontecimentos que se dão numa consciência pessoalizada – «esse in» – e, também das relações intencionais com o ausente desejado – «esse ad».
Cortesia de cienciahoje
Sendo a saudade um acontecimento exclusivamente humano, porque vive o tempo e porque é um estado psíquico intransponível, não pode ser atribuída a Deus nem aos animais. Deus não tem saudade, porque para Ele não há tempo e porque é um Ser perfeito que não pode desejar o que já teve, no passado. Os animais também não possuem consciência saudosa, porque o seu psiquismo é restrito ao sensível e ao que lhe é presente, não tendo consciência do tempo. Somente a consciência formada pode ter saudades, pois insere-se e convence-se do tempo vivido, sem o qual não pode haver saudade. Por isso, a consciência saudosa varia nas diferentes fases da vida. Na infância, a criança é considerada como não possuidora da saudade, porque ainda não tem passado incorporado na consciência. O homem adulto, quando realizado na vida, tem poucas saudades, quando não realizado, é comum que sinta saudades da infância ou da adolescência. O “homem velho” é um poço de saudade.
A saudade é um sentimento preso do «ser do tempo». O tempo dá lhe o Ser, realiza-a e marca-a como existência. O sentimento saudoso está presente nos 3 momentos do tempo: esvazia o presente; sai da saudade através de um futuro imaginário e ideal; o passado marca a consciência saudosa com a sua carga afectiva enorme (maior do que a do presente) que desperta a evocação que reenvia o sujeito para o momento do tempo e para o conjunto de objectos que constitui o núcleo emotivo da «evocação». A particularidade da temporalidade surge com mais clareza quando comparada com a “consciência apaixonada” que vive para o presente, «consciência expectante e esperançada», vive para o futuro, e a «consciência erma» sente-se desamparada e solitária não tendo qualquer ligação com o espaço ou tempo. A consciência saudosa não prolonga o presente, que vive, nem antecipa o futuro, que deseja. A sua temporalidade é «retrotensa» porque não exclui definitivamente o futuro (e ate se pode ter medo de que o futuro proponha experiências de que se venha a ser saudoso), mas insere-se e tem como tempo próprio o passado. Passado esse que é representado pela «evocação», sem a qual a saudade não existe.
Cortesia de seculoemquenascemos
A saudade dá-se «em» e é sempre «de» algo, isto é, a saudade pode ser comunicada mas é intransferível, e é sempre acompanhada pela presença espiritual de entes ausentes ou passados. Na realidade vivida, a saudade é um todo que só é adquirido após o conhecimento de todas as partes que a integram. Os testemunhos literários demonstram que, uns acentuam o «em» da saudade transmitindo manifestações de desejo e de afectividade (ex.: tristeza), outros, impressionados pelo «de» da saudade, transmitem intuições ontológicas acerca do que se é saudoso e da ausência que se deseja presencial e viva. Isto acontece porque a saudade exprime uma tomada de posição da consciência perante seres, situações ou circunstâncias com que se defrontam.
Da justificação anterior derivam os 3 elementos constitutivos da saudade: ser subjectivo ou eu pessoal, seres e situações postas como já vividas e, correlação do eu pessoal com tais seres e situações vividas.
A manifestação da saudade não se faz por actos fisicamente expressivos (ex.: alegria dá lugar ao riso), embora acompanhe-se de manifestações corporais (que não caracterizam, nem alcançam a essência da saudade). Nas formas avassaladoras desta manifestação a consciência torna-se melancólica e o saudoso fecha-se em si próprio. Daqui nasce a necessidade de se discriminar a saudade dos actos da vida emocional que lhe são próximos, e a exigência de uma atitude metodológica que se aplique, principalmente, ao exame à essência da vivência da saudade para saber o que está para lá dos actos expressivos. O estar saudoso exprime psicologicamente um estado em que a consciência opõe o que é dado na experiência à preferência de algo já vivido e ausente. O passado é representado em ligação a algo actual e presente (com dimensão afectiva inferior à dimensão afectiva do passado representado). Há uma valorização da representação (imagem do passado) e uma desvalorização da presentação (algo actual).
Cortesia de caminhoserrantes
Problemática da Saudade
O tema que afecta o pensamento dos portugueses desde o século XV é o do significado, sentido e valor de saudade. Embora a saudade e as situações espirituais da época tenham uma correlação, o mesmo não significa que a saudade seja singular e invariável. Esteticamente o mundo da saudade é ilimitado e indefinido. Na literatura, a temática da saudade consiste na devassa filosófica da origem e da semântica da palavra, tendo em conta o seu sentido geral e reflectindo as consequências morais e sociais da atitude saudosista. A semântica da palavra saudade é apresentada, por Joaquim de Carvalho, como fruto do advérbio salu, estar só fisicamente ou psicologicamente; evoluindo para solitas, solidão, e solitudo, solitude; passando, finalmente, a soledade. Soledade e saudade têm a mesma origem mas, significados diferentes: soledade significa consciência isolada e autocontemplativa, enquanto que, saudade remete para a evocação de um passado vivido. Para o autor a evolução continuou, por Frei Amador, que modificou a palavra soledade para saudade, permanecendo o seu significado. Desta evolução não existem certezas, mas, de certa forma, D. Duarte e Gil Vicente provam-na. D. Duarte afirmando que saudade é tão próprio que não há possível tradução; Gil Vicente recorreu a soledad e, inventou saludad, para não ter que exprimir o conceito em castelhano. Daí nasce o primeiro dado concreto – a palavra saudade é exclusivamente portuguesa e galega e não tem qualquer tradução, ou correspondência noutras línguas.
Como consequência desta emergência, surgem os problemas da saudade, nomeadamente de índole histórico-sociológica, de índole regional, de índole histórico-ontológica, e de índole ontológica. O problema de índole histórico-sociológica tenta descobrir quando, e porque é que a palavra saudade surgiu no noroeste da Península Ibérica, e não noutro local qualquer. A saudade surgiu no séc. XV e no noroeste da península e não noutro local qualquer porque a influência do povo Celta, e os factores históricos, transformaram o sentimento do povo de uma terra em sentimento nacional.
O segundo problema, o de índole regional, tenta saber se a saudade é a expressão de um estado psíquico próprio apenas dos habitantes da península ibérica, ou se foi, apenas, a palavra apropriada para exprimir um estado psíquico comum a todos os homens. As respostas que Joaquim de Carvalho menciona na sua obra são três. A primeira, afirma que a saudade é um sentimento próprio dos habitantes luso-galaicos. A segunda, defende que é a designação de um sentimento que atinge mais o povo português, do que outro qualquer. Por último, a terceira, declara a saudade como característica humana universal, embora seja exclusiva, como palavra, do povo luso-galaico. O que exprime é típico da constituição humana e, como tal, comunicável por palavras, mas a sensibilidade é um factor fundamental na adaptação a novas circunstâncias.
Para Joaquim Carvalho, a necessidade de isolar a saudade daquilo que lhe é semelhante para se obter uma descrição precisa, também é um problema. Este desdobra-se em dois: num problema histórico, e num ontológico. O quarto problema é de índole ontológica: refere-se ao ser a que a saudade atribui sentimento.
O riso e o choro apresentam-se como dois oposto à saudade: o riso e o choro são pontes sentimentais de relação e de comunicação interpessoal, diferente de saudade, que isola o sofredor.
Cortesia de almocrevedaspetas
Os actos da razão argumentativa: duvidar, negar, afirmar…, estão totalmente afastados da saudade, uma vez que esta não assenta em princípios lógicos como o poder de extrair a verdade. A saudade projecta-se e recolhe os aspectos qualitativo-emocionais das coisas, e não a análise objectiva, impessoal do que a rodeia. A saudade existe em todo aquele que não vive o presente em pleno, e tem desvios e contrastes, a excepção será muito difícil de encontrar. A saudade surge no psicológico íntimo, onde também surgem outros estados psíquicos, com a solidão em comum. Podem surgir estados como a solidão contemplativa do eremita, que não é saudade porque o indivíduo busca um ideal religioso que apenas se concretizará com a morte; e a nostalgia do desterrado, também não é saudade porque um dia, o desterrado, há-de voltar à sua terra-natal.
Cortesia afilosofia.no.sapo/Liliana Santos/Carlos Pontes/JDACT