(1922-2010)
Azinhaga, Golegã
Cortesia de palimp
«Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá «que coisa tão cruel». Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. Aquela ideia que temos da esperança nas crianças, nos meninos e nas meninas pequenas, a ideia de que são seres aparentemente maravilhosos, de olhares puros, relativamente a essa ideia eu digo: pois sim, é tudo muito bonito, são de facto muito simpáticos, são adoráveis, mas deixemos que cresçam para sabermos quem realmente são. E quando crescem, sabemos que infelizmente muitas dessas inocentes crianças vão modificar-se. E por culpa de quê? É a sociedade a única responsável? Há questões de ordem hereditária? O que é que se passa dentro da cabeça das pessoas para serem uma coisa e passarem a ser outra?
Uma sociedade que instituiu, como valores a perseguir, esses que nós sabemos, o lucro, o êxito, o triunfo sobre o outro e todas estas coisas, essa sociedade coloca as pessoas numa situação em que acabam por pensar (se é que o dizem e não se limitam a agir) que todos os meios são bons para se alcançar aquilo que se quer. Falámos muito ao longo destes últimos anos (e felizmente continuamos a falar) dos direitos humanos; simplesmente deixámos de falar de uma coisa muito simples, que são os deveres humanos, que são sempre deveres em relação aos outros, sobretudo. E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de facto, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias». In José Saramago, in Diálogos com José Saramago
Cortesia de tijolaco
«Nem a arte nem a literatura têm de nos dar lições de moral. Somos nós que temos de nos salvar, e isso só é possível com uma postura de cidadania ética, ainda que isto possa soar antigo e anacrónico». In José Saramago.
Intimidade
No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,
Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,
No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.
José Saramago, in «Os Poemas Possíveis»
Não me Peçam Razões...
Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.
Não me peçam razões por que se entenda
A força de maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.
Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.
José Saramago, in «Os Poemas Possíveis»
Cortesia de culture online
O último post da Fundação José Saramago dá conta da necessidade da sociedade «pensar».
«Acho que na sociedade actual nos falta filosofia. Filosofia como espaço, lugar, método de reflexão, que pode não ter um objectivo determinado como a ciência, que avança para satisfazer objectivos. Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma», escreveu.
No Coração, Talvez
No coração, talvez, ou diga antes:
Uma ferida rasgada de navalha,
Por onde vai a vida, tão mal gasta.
Na total consciência nos retalha.
O desejar, o querer, o não bastar,
Enganada procura da razão
Que o acaso de sermos justifique,
Eis o que dói, talvez no coração.
José Saramago, in «Os Poemas Possíveis»
As primeiras obras em Lanzarote seriam «Ensaio Sobre a Cegueira» (1995), ficção apocalíptica que o realizador Fernando Meirelles adaptaria ao cinema treze anos depois, e «Todos os Nomes» (1997). Um ano depois, seria alvo da maior distinção da sua carreira. A 9 de Outubro de 1998, José Saramago foi anunciado vencedor do Prémio Nobel da Literatura, o primeiro atribuído a um escritor português. Seria o impulso decisivo para a sua ascensão a figura literária global e o premiar de uma obra que se dedicou a explorar e questionar a natureza humana de diversos ângulos e em diversos cenários. Em 2002, em entrevista ao diário britânico Guardian, confessava, «provavelmente sou um ensaísta que, como não sabe escrever ensaios, escreve romances». Não só, para além dos romances e da poesia, deixa obra enquanto dramaturgo, assinando as peças teatrais «Que Farei Com Este Livro» ou «In Nomine Dei».
«Dificílimo acto é o de escrever, responsabilidade das maiores.(…) Basta pensar no extenuante trabalho que será dispor por ordem temporal os acontecimentos, primeiro este, depois aquele, ou, se tal mais convém às necessidades do efeito, o sucesso de hoje posto antes do episódio de ontem, e outras não menos arriscadas acrobacias(…)». In José Saramago, «A Jangada de Pedra», 1986
Cortesia de aventar eu
Da poesia ao romance, passando pelo conto, crónica, viagem e teatro, foi um dos autores portugueses mais conhecido internacionalmente.
Morre aos 87 anos de idade o Nobel da Literatura de 1998.
JDACT