quinta-feira, 24 de junho de 2010

Alexandre Herculano: A Morte do Lidador

Cortesia de auladeliteraturaportuguesa
«... Era um dia do mês de julho, duas horas depois da alvorada, e tudo estava em grande silêncio dentro da cêrca de Beja: batia o sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e tôrres que a defendiam: ao longe, pelas imensas compinas que avizinhavam o têso sôbre que a povoação está assentada, viam-se ondear as searas maduras, cultivadas por mãos de agarenos para seus novos senhores cristãos. Regados por lágrimas de escravos tinham sido êsses campos, quando formoso dia de inverno os sulcou o ferro do arado; por lágrimas de servos seriam outra vez umedecidos, quando, no mês de julho, a paveia, cercada pela fouce, pendesse sôbre a mão do ceifeiro: chôro de amargura havia aí, como, cinco séculos antes, o houvera: então de cristãos conquistados, hoje de mouros vencidos. A cruz hateava-se outra vez sôbre o crescente quebrado: os coruchéus das mesquitas convertiam-se em campanários de sés, e a voz do almuadem trocava-se por toada de sinos, que chamavam à oração entendida por Deus.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca tão de perto chegara Almoleimar; porque uma frecha fôra pregada a mão em um grosso sovereiro que sombreava uma fonte a pouco mais de tiro de funda dos muros do castelo. Era que nesse dia deviam ir mais longe os cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos pajens o seu lorigão de malha de ferro e a sua boa toledana.
Cortesia de fatiasdeca
Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam à rédea sôlta pelas campinas de Beja; trinta, não mais, eram êles; mas orçavam por trezentos os homens d'armas, escudeiros e pajens que os acompanhavam. Entre todos avultava em robustez e grandeza de membros o Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam, como flocos de neve, sôbre o peitoral da cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas, a quem, pelos espantosos golpes da sua espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas, fora de suas fundas e soltos ao vento, o cintilar das cervillheiras, as côres variegadas das cotas, e as ondas de pó que se alevantavam debaixo dos pés dos ginetes, como se alevanta o bulcão de Deus, varrendo a face de campina ressequida, em tarde ardente de verão ... ». In A Morte do Lidador, de Alexandre Herculano.
 
HERCULANO, Alexandre. A morte do lidador. São Paulo : Logos, 1959. p. 41-51 (Antologia da Literatura Mundial), texto proveniente da Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro.
http://www.bibvirt.futuro.usp.br. A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo, Texto-base digitalizado por Simone Rosales
(A Morte do Lidador_Resumo
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