quarta-feira, 9 de junho de 2010

Ensaios de História Medieval: A sexualidade na Idade Média Portuguesa. Primeira Parte

Cortesia de snpcultura
Com a devida vénia ao Professor Doutor José Mattoso publico alguns textos do livro «Naquele Tempo» do Círculo de Leitores e Temas e Debates de 2009, Fevereiro, ISBN 978-989-644-052-7

Cortesia de mertola-concelho
A sexualidade na Idade Média Portuguesa

As palavras e as coisas
«Não é possível iniciar um esboço de síntese sobre o que poderia ter sido a sexualidade durante a Idade Média porruguesa sem apontar de imediato o carácter problemático que qualquer tentativa com tal objectivo necessariamente tem de assumir. Não só porque se trata de uma matéria que comporta sempre uma grande dose de ficção e de ocultação (sobretudo quando se tenta conhecer o que foram as práticas), mas também porque se verifica nela uma enorme distância entre o individual e o colectivo; como se sabe, em matéria de sexualidade, aquilo de que mais se fala não é o que mais se pratica; e a variedade de comportamentos é de tal modo grande que as médias estatísticas tornam-se enganadoras como representação da realidade. Além disso, não se podem confundir os valores ou os ideais com as normas, nem nenhuma destas ou daqueles com o que é habitual e efectivamente se faz. Ao contrário do que acontece com outras matérias históricas, mesmo com aquelas que os historiadores só recentemente começaram a estuda, é praticamente impossível reunir factos que se possam considerar suficientemente numerosos, significativos e seguros para averiguar o que na realidade foi a prática sexual durante a Idade Média portuguesa. O âmbito da prática permanece de tal modo desconhecido, que mais vale reconhecer a nossa ignorância do que tentar extrair ilações aventurosas a partir de indícios fragmentários, inseguros e sempre excepcionais. É preferível admitir que só podemos falar de uma coisa, e mesmo dessa com grandes dúvidas e dificuldades: o discurso medieval sobre a sexualidade; só a partir daqui se pode especular sobre o seu eventual significado no contexto da sociedade que o produziu. Foi isso, afinal, o que Michel Foucault também teve de se limitar a fazer na sua Histoire de la sexualité (1976-1984). Assim, podemos, até certo ponto, conhecer alguma coisa acerca do que os Portugueses da Idade Média diziam da sexualidade, mas pouco ou nada ficamos a saber acerca do que eles realmente faziam. A matéria nem por isso deixa de ser extremamente interessante. Face ao que é hoje o discurso sobre a sexualidade, a Idade Média revela-nos algumas surpresas significativas».
Cortesia de escolajacydeassis
A pluralidade do discurso medieval sobre a sexualidade
«Começarei por fazer notar que esse discurso não me parece tão dotado de unidade como o mesmo Foucault afirma de passagem, para o comparar com o discurso moderno sobre o mesmo rema (1976, p. 46). Ora este facto obriga desde logo a levantar vários problemas bem mais complexos do que poderia parecer à primeira vista. Será justamente dessa constatação que convém partir, para poder descobrir por que razão deparamos com uma grande quantidade de informações aparentemente contraditórias, e para evitar a tentação de fazer generalizações precipitadas a partir de observações isoladas ou fragmentárias.
A afirmação de Foucault pressupunha, decerto, a ideia de que as concepções e a prática da sexualidade medieval se baseavam exclusivamente naquelas que eram propostas pela Igreja e aparentemente assumidas sem resistência pelo conjunto dos leigos. A verdade, porém, é que a moral eclesiástica sobre tal matéria não foi tão dominante e exclusiva como se supõe, nem tão semelhante à que a hierarquia promoveu depois do século XVI. Apesar de na Idade Média não se ter ainda verificado a enorme proliferação de pólos de produção discursiva que caracteriza a época contemporânea, como Foucault demonstrou de maneira tão brilhante, existiam também outros pólos culturais onde a influência dessa moral se verificava apenas de maneira muito relativa. Identifiquemos desde já, para simplificar o de medicina, o da poesia erótica, o da poesia satírica e o das fontes narrativas. Os modelos, pressupostos e preceitos que neles se manifestam nem sempre coincidiam com os da pregação, da catequese, da pastoral e da teologia sancionadas ou promovidas pela hierarquia eclesiástica. Não se pode também esquecer que o próprio discurso da moral clerical não era, durante a Idade Média, tão linear e unitário como se veio a tornar na época moderna. Uma coisa eram os preceitos elementares e taxativos transmitidos pelos manuais de confessores a partir do século XIII, outra, as considerações dos teólogos, Entre estes, por sua vez, também não reinava um acordo completo.
Aquilo que a doutrina oficialmente sancionada pela hierarquia eclesiástica afirmava, embora favorecesse determinadas interpretações teológicas, tinha normalmente um âmbito mais reduzido e um alcance mais limitado: estava contido propriamente nos preceitos dos concílios e nos decretos papais, base fundamental da formulação canónica codificada no Decretum de Graciano (meados do século XII), a que o papado deu valor oficial um século mais tarde; ou então, até ao século XI, nas secas tarifas dos penitenciais, e depois , a partir do século XII, nas instruções elementares dos manuais de confessores.
É claro que a moral clerical se sobrepõe fortemente a todas as outras normas e considerações, ao reivindicar o estatuto de moral oficial - ou seja, de única norma publicamente defensável e legítima - e ao obter o apoio do poder monárquico para a sua propagação, defesa e adopção efectiva. Este carácter «oficial» vai-se tornando progressivamente dominante, na medida em que o poder monárquico controla a invasora rede do aparelho judicial que a pouco e pouco se sobrepõe às justiças locais dos senhores feudais e dos concelhos; os juízes do rei inspiram-se no direito escrito, e este, a partir do século XII, aplica, nas suas grandes linhas, os princípios da moral eclesiástica. Limita-se, porém, a prescrever punições para os crimes mais graves, como por exemplo a sodomia e o adultério, sem pretender interferir na vida íntima dos indivíduos, ao contrário daquilo que pretende a pastoral da penitência sacramental. A aplicação destas punições será, como se pode imaginar, extremamente dependente .dos costumes efectivos de cada comunidade, e até do arbítrio dos juízes». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios da História Medieval.

Cortesia de Temas e Debates, Círculo de Leitores/JDACT