Cortesia de veramartinsitajai
Entre Sombras
Vem às vezes sentar-se ao pé de mim
— A noite desce, desfolhando as rosas —
Vem ter commigo, ás horas duvidosas,
Uma visão, com azas de setim...
Pousa de leve a delicada mão
— Rescende amena a noite socegada —
Pousa a mão compassiva e perfumada
Sobre o meu dolorido coração...
E diz-me essa visão compadecida
— Ha suspiros no espaço vaporoso —
Diz-me: Porque é que choras silencioso?
Porque é tão erma e triste a tua vida?
Vem commigo! Embalado nos meus braços
— Na noite funda ha um silencio santo —
N'um sonho feito só de luz e encanto
Transporás a dormir esses espaços...
Porque eu habito a região distante
— A noite exhala uma doçura infinda —
Onde ainda se crê e se ama ainda,
Onde uma aurora igual brilha constante...
Habito ali, e tu virás commigo
— Palpita a noite n'um clarão que offusca —
Porque eu venho de longe, em tua busca,
Trazer-te paz e alivio, pobre amigo...
Assim me fala essa visão nocturna
— No vago espaço ha vozes dolorosas —
São as suas palavras carinhosas
Agua correndo em crystalina urna...
Mas eu escuto-a immovel, somnolento
— A noite verte um desconsolo immenso —
Sinto nos membros como um chumbo denso,
E mudo e tenebroso o pensamento...
Fito-a, n'um pasmo doloroso absorto
— A noite é erma como campa enorme —
Fito-a com olhos turvos de quem dorme
E respondo: Bem sabes que estou morto!
Antero de Quental
Acordando
Em sonho, às vezes, se o sonhar quebranta
Este meu vão sofrer; esta agonia,
Como sobe cantando a cotovia,
Para o céu a minh'alma sobe e canta.
Canta a luz, a alvorada, a estrela santa,
Que ao mundo traz piedosa mais um dia...
Canta o enlevo das cousas, a alegria
Que as penetra de amor e as alevanta...
Mas, de repente, um vento humido e frio
Sopra sobre o meu sonho: um calafrio
Me acorda. — A noite é negra e muda: a dor
Cá vela, como d'antes, ao meu lado...
Os meus cantos de luz, anjo adorado,
São sonho só, e sonho o meu amor!
Antero de Quental
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