sábado, 18 de março de 2017

A Papisa Joana. Donna Woolfolk Cross. «Então, ela não recitava nove Pai-Nossos cada vez que arrancava uma das plantas da terra?»

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«(…) Abanando a cabeça tristemente, Hrotrud beliscava e esfregava os dedos dos pés e das mãos entorpecidos, sob o olhar dos dois rapazes silenciosos. Olhando-os, ficou mais descansada. Será um parto fácil, disse ela para si mesma, tentando afastar da ideia o pobre Elias. Afinal, ajudei Gudrun no parto destes dois e foi bastante fácil. O rapaz mais velho deve ter quase seis invernos, uma criança robusta, com um ar inteligente. O mais novo, o seu irmão bochechudo, com três anos, abanava-se para trás e para a frente, chupando morosamente o polegar. Eram ambos morenos, como o pai. Nenhum deles tinha herdado o extraordinário cabelo dourado da sua mãe saxónia. Hrotrud recordou-se de como os homens da aldeia tinham ficado a olhar espantados para o cabelo de Gudrun, quando o cónego a trouxe de uma das suas viagens missionárias na Saxónia. Ao princípio, o facto de o cónego ter trazido uma mulher tinha causado bastante sensação. Alguns diziam que era contra a lei, que o Imperador tinha promulgado um édito proibindo o casamento aos homens da Igreja. Mas outros diziam que não podia ser porque era sabido que, sem uma mulher, um homem estava sujeito a todo o tipo de tentações e fraquezas. Olhem para os monges de Stablo, diziam eles, que envergonham a Igreja com as suas fornicações e bebedeiras. E não havia dúvida de que o cónego não bebia e era um homem trabalhador. O compartimento estava quente. A grande lareira estava cheia com grandes toros de vidoeiro e carvalho; o fumo elevava-se em grandes rolos, saindo pelo buraco do telhado em colmo. Era uma casa confortável. As vigas de madeira que formavam as paredes eram pesadas e espessas e as frinchas entre elas estavam bem tapadas com palha e argamassa para impedir a entrada do frio.
A única janela existente tinha sido coberta com placas de carvalho, uma medida de protecção suplementar contra os nordostroni, as nortadas frigidíssimas do Inverno. A casa era suficientemente grande para estar dividida em três compartimentos, um onde se encontrava o quarto do cónego e da sua mulher, um para os animais que ali se abrigavam contra a intempérie. Hrotrud ouvia-os resfolegar e bater com os cascos, à sua esquerda, e este, o compartimento central, onde a família trabalhava e comia e as crianças dormiam. Para além do bispo, cuja casa era feita em pedra, em Ingelheim ninguém tinha uma casa tão boa como esta. Os membros de Hrotrud começaram a picar com formigueiro e a palpitar, voltando a adquirir sensibilidade. Olhou para os seus dedos; estavam duros e secos, mas as manchas roxas tinham desaparecido, dando lugar a um cor-de-rosa-avermelhado com aparência mais saudável. Ela suspirou de alívio, decidindo fazer uma oferta a São Cosme, em acção de graças. Hrotrud ficou junto à lareira durante mais alguns instantes, usufruindo do seu calor; depois, com um aceno encorajador para os rapazes, apressou-se na direcção do compartimento onde a parturiente esperava. Gudrun estava deitada numa cama de turfa coberta com palha fresca. O cónego, um homem moreno, com umas sobrancelhas espessas e carrancudas, que lhe davam uma expressão de austeridade permanente, estava sentado à parte. Acenou para Hrotrud, depois voltou a concentrar a sua atenção no grande livro encadernado em madeira que tinha sobre os joelhos. Hrotrud já tinha visto o livro em visitas anteriores, mas, sempre que o via, ficava cheia de temor. Era um exemplar da Sagrada Escritura e era o único livro que ela tinha visto. Tal como os outros aldeões, Hrotrud também não sabia ler nem escrever. Mas sabia que aquele livro era um tesouro, que valia mais soldos em ouro do que toda a aldeia ganhava num ano. O cónego tinha-o trazido da sua terra natal, a Inglaterra, onde os livros não eram tão raros como no país franco. Hrotrud apercebeu-se imediatamente de que Gudrun estava mal. A sua respiração era fraca, o seu pulso estava demasiado rápido, todo o seu corpo estava inchado e balofo. A parteira conhecia os sintomas. Não havia tempo a perder. Pegou no saco que trazia e tirou dele um pouco de excrementos de pombo que tinha recolhido cuidadosamente no Outono. Regressando à lareira, atirou as ervas ao fogo, vendo com satisfação a forma como o fumo negro começou a subir, limpando o ar de espíritos malignos. Devia ter de aliviar as dores, de forma a que Gudrun pudesse descontrair-se e ajudar a criança a nascer. Para isso, tinha de usar meimendro. Pegou num ramo de florinhas amarelas, raiadas de púrpura, colocou-as num almofariz em loiça e reduziu-as habilidosamente a pó, tapando o nariz por causa do cheiro acre que elas libertavam. Depois, deitou o pó num copo de vinho tinto e levou-o a Gudrun, para ela o beber. O que lhe queres dar?, perguntou o cónego bruscamente. Hrotrud estremeceu; quase se tinha esquecido de que ele estava ali. Ela está fraca, por causa do trabalho de parto. Isto vai aliviar-lhe as dores e ajudar a criança a nascer. O cónego franziu as sobrancelhas. Tirou o copo das mãos de Hrotrud, atravessou o quarto a passos largos e atirou-o ao lume, onde ele assobiou por momentos e depois desapareceu. É um sacrilégio, mulher!
Hrotrud estava horrorizada. Tinha passado semanas de busca penosa para conseguir juntar aquela pequena quantidade do precioso medicamento. Virou-se para o cónego, pronta a descarregar a sua ira, mas deteve-se quando viu o seu olhar impiedoso. Está escrito, e bateu no livro com a mão para reforçar o que dizia. Darás à luz na dor. Esse remédio é ímpio! Hrotrud estava indignada. Não havia nada de anticristão no seu remédio. Então, ela não recitava nove Pai-Nossos cada vez que arrancava uma das plantas da terra? O cónego nunca se tinha queixado quando ela lhe tinha dado meimendro para aliviar as suas frequentes dores de dentes. Mas não ia discutir com ele. Ele era um homem influente. Uma palavra sobre as suas práticas ímpias e Hrotrud estaria arruinada. Gudrun gemeu na angústia de mais uma dor. Muito bem, pensou Hrotrud. Se o cónego não autorizava o meimendro, ela tinha de tentar outra coisa. Voltou ao seu saco e tirou um longo pedaço de pano, cortado como o Sudário de Cristo. Com movimentos rápidos e eficazes, atou-o firmemente ao abdómen de Gudrun. Gudrun gemeu quando ela a levantou da cama. O mínimo movimento provocava-lhe dores, mas não havia nada a fazer. Hrotrud tirou um pequeno pacote do seu saco, cuidadosamente embrulhado num pedaço de seda. Dentro, encontrava-se um dos seus tesouros, um astrágalo de um coelho morto no dia de Natal. Tinha-o obtido no ano anterior, por ocasião de uma caçada imperial. Com todo o cuidado, cortou três fatias finas de osso e pô-las dentro da boca de Gudrun. Mastiga isto devagar, ordenou ela a Gudrun que assentiu, fraca. Hrotrud sentou-se à espera. Pelo canto do olho, observava o cónego, de tal modo concentrado no seu livro que as suas sobrancelhas quase se juntavam ao nariz». In Donna Woolfolk Cross, A Papisa Joana, 2000, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas, 2010, ISBN 978-972-232-641-4.

Cortesia de EPresença/JDACT