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Com Wells se abre a ficção científica, um novo horizonte da imaginação que assistirá
a um desenvolvimento impetuoso na segunda metade do século XX. Mas o génio de
Wells não se limita a elaborar maravilhas e terrores do futuro, escancarando visões
apocalípticas; os seus contos extraordinários são sempre baseados num achado da
inteligência, que pode ser extremamente simples. O caso do falecido sr.
Evelsham conta a história de um jovem que é escolhido como herdeiro universal
por um velho desconhecido, com a condição de que ele aceite adoptar o nome do
ancião; e eis que ele acorda na casa do velho e olha para as próprias mãos:
elas se tornaram enrugadas. Observa-se no espelho: ele é o velho. No mesmo
momento, a personagem compreende que aquele que era o velho tomou a sua
identidade e está vivendo a sua juventude. Exteriormente, tudo é idêntico à normal
aparência de antes, mas a realidade é de um assombro imenso. Quem conjuga com
mais leveza a sofisticação do literato de qualidade com o ímpeto do narrador
popular (entre os seus autores preferidos ele sempre citava Dumas) é Robert
Louis Stevenson. Na sua breve vida de doente, Stevenson conseguiu fazer várias
obras perfeitas, desde os romances de aventura ao Dr. Jekyll e a muitas narrativas
fantásticas mais curtas: Olalla, história de vampiras na Espanha napoleónica
(o mesmo ambiente de Potocki, que não sei se ele chegou a ler); Thrown Janet,
história de obsessões assombradas escocesas; os Island's entertainments, nos
quais ele colhe com mão ligeira o mágico do exotismo (mas também exporta
motivos escoceses, adaptando-os aos ambientes da Polinésia); Markheim, que
segue a trilha do fantástico interiorizado, assim como O coração denunciador
de Poe, com uma presença mais marcada da consciência puritana. Entre os mais
fervorosos admiradores e amigos de Stevenson está um escritor que de popular
não tem nada: Henry James. E é com esse autor, que não saberíamos definir se
americano, inglês ou europeu, que o fantástico do século XIX tem a sua última
encarnação, ou melhor, desencarnação, já que aí ele se torna mais invisível e
impalpável do que nunca, mera emanação ou vibração psicológica. Aqui é necessário
caracterizar o ambiente intelectual em que a obra de Henry James nasce,
particularmente as teorias de seu irmão, o filósofo William James, sobre a
realidade psíquica da experiência. Poderíamos dizer, pois, que no final do
século o conto fantástico mais uma vez se torna conto filosófico, tal como no
início do século.
Os
fantasmas das ghost stories de Henry James são bastante elípticos: podem
ser encarnações do mal sem rosto e sem forma, como os diabólicos serviçais de A
volta do parafuso, ou aparições bem visíveis que dão forma sensível a um
pensamento dominante, como sir Edmund Orme, ou mistificações que desencadeiam a
real presença do sobrenatural, como no Aluguel do fantasma. Num dos
contos mais sugestivos e emocionantes, The jolly comer, o fantasma apenas
entrevisto pelo protagonista é o si mesmo que ele teria sido se a sua vida
tivesse tido outro curso; em Vida privada há um homem que só existe
quando os outros o olham, do contrário ele se dissolve, e um outro que, ao
contrário, existe duas vezes, porque tem um duplo que escreve livros que ele
jamais saberia escrever. Com James, autor que pela cronologia pertence ao século
XIX, mas que já faz parte do nosso século como gosto literário, se encerra esta
apresentação. Deixei de fora os autores italianos porque não me agradava a ideia
de incluí-los só por obrigação de presença: o fantástico na literatura italiana
do século XIX é decididamente um campo menor. Colectâneas específicas, bem como
alguns textos de escritores mais conhecidos por outros aspectos de sua obra, de
De Marchi a Capuana, podem propiciar descobertas preciosas e uma interessante
documentação no que se refere ao gosto. Entre as outras literaturas que não
incluí, a espanhola tem um autor de contos fantásticos muito conhecido, G. A.
Becquer. Mas esta antologia não pretende ser completa. Meu objectivo foi
oferecer um panorama centrado em alguns exemplos e, sobretudo, um livro
inteiramente legível.
O
fantástico visionário. Jan Potocki
Finalmente,
acordei para valer; o sol queimava as minhas pálpebras, eu as abria com
dificuldade. Vi o céu. Vi que estava ao relento. Mas o sono ainda pesava nos meus
olhos. Não dormia mais, mas ainda não estava desperto. Imagens de suplícios sucederam-se
umas às outras. Fiquei apavorado. Levantei-me sobressaltado e me sentei. Onde
encontrarei as palavras para expressar o horror que então me invadiu? Eu estava
deitado ao pé da forca de Los Hermanos. Os cadáveres dos dois irmãos De Zoto
não estavam enforcados, e sim deitados ao meu lado. Aparentemente eu tinha passado
a noite com eles. Descansava em cima de pedaços de cordas, rodas apodrecidas,
restos de carcaças humanas, e nacos horrorosos e fétidos que delas se soltavam.
Ainda
pensei que não estivesse bem acordado e que estivesse tendo um sonho ruim. Fechei
os olhos e busquei na minha memória onde eu tinha estado na véspera... Então
senti garras se enfiando nos meus flancos. Vi que um abutre se havia empoleirado
em mim e devorava um de meus companheiros de quarto. A dor que me causava a
impressão de suas garras me acordou de vez. Vi que as minhas roupas estavam
perto de mim, e me apressei em vesti-las. Quando me aprontei, quis sair do recinto
da forca, mas encontrei a porta fechada com pregos e tentei quebrá-la, em vão.
Portanto, tive de subir naquelas tristes muralhas. Consegui e, apoiando-me numa
das pilastras do patíbulo, comecei a examinar as terras dos arredores». Organização
de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o
fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São
Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.
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