segunda-feira, 13 de março de 2017

Contos fantásticos do século XIX. Italo Calvino. «Finalmente, acordei para valer; o sol queimava as minhas pálpebras, eu as abria com dificuldade. Vi o céu. Vi que estava ao relento»

jdact e wikipedia

«(…) Com Wells se abre a ficção científica, um novo horizonte da imaginação que assistirá a um desenvolvimento impetuoso na segunda metade do século XX. Mas o génio de Wells não se limita a elaborar maravilhas e terrores do futuro, escancarando visões apocalípticas; os seus contos extraordinários são sempre baseados num achado da inteligência, que pode ser extremamente simples. O caso do falecido sr. Evelsham conta a história de um jovem que é escolhido como herdeiro universal por um velho desconhecido, com a condição de que ele aceite adoptar o nome do ancião; e eis que ele acorda na casa do velho e olha para as próprias mãos: elas se tornaram enrugadas. Observa-se no espelho: ele é o velho. No mesmo momento, a personagem compreende que aquele que era o velho tomou a sua identidade e está vivendo a sua juventude. Exteriormente, tudo é idêntico à normal aparência de antes, mas a realidade é de um assombro imenso. Quem conjuga com mais leveza a sofisticação do literato de qualidade com o ímpeto do narrador popular (entre os seus autores preferidos ele sempre citava Dumas) é Robert Louis Stevenson. Na sua breve vida de doente, Stevenson conseguiu fazer várias obras perfeitas, desde os romances de aventura ao Dr. Jekyll e a muitas narrativas fantásticas mais curtas: Olalla, história de vampiras na Espanha napoleónica (o mesmo ambiente de Potocki, que não sei se ele chegou a ler); Thrown Janet, história de obsessões assombradas escocesas; os Island's entertainments, nos quais ele colhe com mão ligeira o mágico do exotismo (mas também exporta motivos escoceses, adaptando-os aos ambientes da Polinésia); Markheim, que segue a trilha do fantástico interiorizado, assim como O coração denunciador de Poe, com uma presença mais marcada da consciência puritana. Entre os mais fervorosos admiradores e amigos de Stevenson está um escritor que de popular não tem nada: Henry James. E é com esse autor, que não saberíamos definir se americano, inglês ou europeu, que o fantástico do século XIX tem a sua última encarnação, ou melhor, desencarnação, já que aí ele se torna mais invisível e impalpável do que nunca, mera emanação ou vibração psicológica. Aqui é necessário caracterizar o ambiente intelectual em que a obra de Henry James nasce, particularmente as teorias de seu irmão, o filósofo William James, sobre a realidade psíquica da experiência. Poderíamos dizer, pois, que no final do século o conto fantástico mais uma vez se torna conto filosófico, tal como no início do século.
Os fantasmas das ghost stories de Henry James são bastante elípticos: podem ser encarnações do mal sem rosto e sem forma, como os diabólicos serviçais de A volta do parafuso, ou aparições bem visíveis que dão forma sensível a um pensamento dominante, como sir Edmund Orme, ou mistificações que desencadeiam a real presença do sobrenatural, como no Aluguel do fantasma. Num dos contos mais sugestivos e emocionantes, The jolly comer, o fantasma apenas entrevisto pelo protagonista é o si mesmo que ele teria sido se a sua vida tivesse tido outro curso; em Vida privada há um homem que só existe quando os outros o olham, do contrário ele se dissolve, e um outro que, ao contrário, existe duas vezes, porque tem um duplo que escreve livros que ele jamais saberia escrever. Com James, autor que pela cronologia pertence ao século XIX, mas que já faz parte do nosso século como gosto literário, se encerra esta apresentação. Deixei de fora os autores italianos porque não me agradava a ideia de incluí-los só por obrigação de presença: o fantástico na literatura italiana do século XIX é decididamente um campo menor. Colectâneas específicas, bem como alguns textos de escritores mais conhecidos por outros aspectos de sua obra, de De Marchi a Capuana, podem propiciar descobertas preciosas e uma interessante documentação no que se refere ao gosto. Entre as outras literaturas que não incluí, a espanhola tem um autor de contos fantásticos muito conhecido, G. A. Becquer. Mas esta antologia não pretende ser completa. Meu objectivo foi oferecer um panorama centrado em alguns exemplos e, sobretudo, um livro inteiramente legível.

O fantástico visionário. Jan Potocki
Finalmente, acordei para valer; o sol queimava as minhas pálpebras, eu as abria com dificuldade. Vi o céu. Vi que estava ao relento. Mas o sono ainda pesava nos meus olhos. Não dormia mais, mas ainda não estava desperto. Imagens de suplícios sucederam-se umas às outras. Fiquei apavorado. Levantei-me sobressaltado e me sentei. Onde encontrarei as palavras para expressar o horror que então me invadiu? Eu estava deitado ao pé da forca de Los Hermanos. Os cadáveres dos dois irmãos De Zoto não estavam enforcados, e sim deitados ao meu lado. Aparentemente eu tinha passado a noite com eles. Descansava em cima de pedaços de cordas, rodas apodrecidas, restos de carcaças humanas, e nacos horrorosos e fétidos que delas se soltavam.
Ainda pensei que não estivesse bem acordado e que estivesse tendo um sonho ruim. Fechei os olhos e busquei na minha memória onde eu tinha estado na véspera... Então senti garras se enfiando nos meus flancos. Vi que um abutre se havia empoleirado em mim e devorava um de meus companheiros de quarto. A dor que me causava a impressão de suas garras me acordou de vez. Vi que as minhas roupas estavam perto de mim, e me apressei em vesti-las. Quando me aprontei, quis sair do recinto da forca, mas encontrei a porta fechada com pregos e tentei quebrá-la, em vão. Portanto, tive de subir naquelas tristes muralhas. Consegui e, apoiando-me numa das pilastras do patíbulo, comecei a examinar as terras dos arredores». Organização de Italo Calvino, Contos fantásticos do século XIX, O fantástico visionário e o fantástico quotidiano, 1983, vários tradutores, Companhia das Letras, São Paulo, 2004, ISBN 978-853-590-502-1.

Cortesia da CdasLetras/JDACT