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Junho
de 1871
«(…)
Assim vamos. E na epiderme de cada facto contemporâneo cravaremos uma farpa.
Apenas a porção de ferro estritamente indispensável para deixar pendente um
sinal! As nossas bandarilhas não têm cor, nem o branco da auriflama, nem o azul
da blusa. Nunca poderão tão ligeiras Farpas
ferir a grande artéria social: ficarão à epiderme. Dentro continuará a
correr serenamente a matéria vital, sangue azul ou sangue vermelho, dissolução
de guano ou extracto de salsaparrilha. Vamos rir, pois. O riso é uma filosofia.
Muitas vezes o riso é uma salvação. E em política constitucional, pelo menos, o
riso é uma opinião. Aqui está esta pobre Carta Constitucional que declara com
ingenuidade que o País é católico e monárquico. É por isso talvez que ninguém
crê na religião, e que ninguém crê na realeza! E que ninguém crê em ti, ó Carta
Constitucional! Os ministros que te defendem, os jornais que te citam, os
jurisconsultos que te comentam, os professores que te ensinam, as autoridades
que te realizam, os padres que falam em ti à missa conventual, aqueles mesmos
cuja única profissão era crer em ti, todos te renegam, e, ganhando o seu pão em
teu nome, ridicularizam-te pelas mesas dos botequins!
A Carta adorada da Grã-Duquesa tem mais
sucesso do que tu! Descrê-se da religião, a que deste a honra de um parágrafo.
A burguesia fez-se livre-pensadora.
Tem ainda um resto de respeito maquinal pelo Todo-Poderoso, mas criva de epigramas
as pretensões divinas de Jesus, e diz coisas desagradáveis ao papa. O
cepticismo faz parte do bom gosto. Nenhum ministro que se preze ousaria
acreditar em S. Sebastião. A Teologia, o maior monumento do espírito humano,
faz estalar de riso os cavalheiros liberais. Desprezam-se os padres e
despreza-se o culto, o que não impede que a propósito de qualquer coisa se
exija o juramento! A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da
consciência liberal, as burguesas enriquecidas tomaram-na sob a sua protecção:
e gostam igualmente que as suas parelhas sejam vistas à porta da Marie e à porta dos Inglesinhos. Aceitam Deus
como um chique. Nos templos mesmo a religião caiu em descrédito. Ser padre não
é uma convicção, é um ofício; o sacerdote crê e ora na proporção da côngrua. E
como acredita mais na secretaria dos negócios eclesiásticos do que na revelação
divina, trabalha nas eleições. O povo, esse, reza. E a única coisa que faz além
de pagar. A pobre realeza, que a Carta tanto honra, não é mais bem sucedida. E
a perpétua escarnecida. E escarnecida pelos jornais de oposição, e pelos
governos demitidos. Escarnecida nos teatros, onde o tipo do Rei Bobeche teve o triunfo
de um panfleto. E escarnecida nas conversações dos cafés, e na maledicência do
Grémio. Segundo a Carta, a realeza é irresponsável. Mas não há partido que não
lance a sua inépcia à conta da realeza. Se não fosse o Rei!, é a desculpa invariável dos
ministros que não governam, dos oradores que não falam, dos jornalistas que não
escrevem, dos intrigantes que não alcançam. A realeza é acusada por tudo: pelas
despesas que faz e pela pobreza em que vive; pela sua acção e pela sua inacção;
por dar bailes e por não dar bailes. O público está para com ela num estado
enervado, como com um importuno a quem não lhe convém dizer: vai-te embora!
No
entanto a opinião liberal continua a declarar que existe um trono. Existe para
ela como um efeito de Quintiliano, como um movimento de eloquência para os
discursos de grande gala! Apesar disso, a esta política infiel aos seus
princípios, vivendo num perpétuo desmentido de si mesma, desautorizada,
apupada, pede ainda, a uma multidão inumerável de simples, a salvação da coisa pública. E trágico,
como se se pedisse, a um palhaço de pernas quebradas, mais uma cambalhota ou
mais um chiste. O orgulho da política nacional é ser doutrinária. Ser
doutrinário é ser um tanto ou quanto de todos os partidos; é ter deles por
consequência o mínimo; é não ser de partido nenhum, ou ser cada um apenas do
partido do seu egoísmo. De modo que todos estes monárquicos, bem no íntimo,
votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por concordar que
é indispensável a monarquia! Quer-se geralmente o prestígio da realeza e a
majestade do poder; mas deseja-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguer e
que Sua Majestade a Rainha não tenha mais que dois pares de botinas. Chega-se a
admirar Luís Blanc, mas prefere-se a tudo isso uma terra de semeadura obrigada à
côngrua para o pároco e aos tantos por cento para a viação. A burguesia
invejosa e desempregada fala na federação,
na república federativa,
na extinção do funcionalismo,
na emancipação das classes
operárias; mas entende que o País pode esperar por estes benefícios
todos, se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis ou de chefes
de secretaria. Uma plebe ardente fala em beber o sangue da nobreza; mas ficaria
satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia, mandasse abrir Cartaxo.
Tanto
se conciliam todos! E assim que o egoísmo domina. Cada um se abaixa avidamente sobre
o seu prato. Mas tudo se equilibra, diz a opinião constitucional, não há
comoções, não há lutas! Sim, tudo se equilibra, no desprezo, por desprezo. Nas
sociedades corrompidas a ordem chega assim às vezes a reinar. E a ordem pelo
desdém. Outros diriam pela imbecilidade! A opinião é tão indiferente e alheia
às mudanças de ministério, como as cadeiras do Governo são indiferentes a
suportarem a pesada corpulência do gordo ministro A, ou a inquietação nervosa
do esguio ministro B. O País ouve falar da evolução política, com a mesma
distracção com que ouve falar dos negócios do Cáucaso. Sabem, pois, qual seria
o Governo útil, profícuo, necessário, neste deplorável estado do espírito
público? Aquele que o País, chamado a pronunciar-se por um plebiscito negativo,
declarasse terminantemente e compactamente, que não queria. Porque então a
opinião acordaria talvez, viveria, lutaria, e apareceriam dois partidos que não
existem agora, e sobre os quais gira como nos seus pólos naturais a lei do
aperfeiçoamento: para um lado a Reacção, para outro a Revolução. Até lá os
poderes do Estado subsistem, tendo perdido a sua significação. O corpo
legislativo há muitos anos que não legisla Criado pela intriga, pela pressão administrativa,
pela presença de quatro soldados e um senhor alferes, e pelo eleitor a 500
réis, vem apenas a ser uma assembleia muda, sonolenta, ignorante, abanando com
a cabeça que sim. Às vezes procura viver; e demonstra então, em provas
incessantes, a sua incapacidade orgânica para discutir, para pensar, para
criar, para dirigir, para resolver a questão mais rudimentar de administração».
In
Eça de Queirós, Uma Campanha Alegre, volume 1, 1890-1881, As Farpas, Edições Vercial,
2012, ISBN 978-989-700-069-0.
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