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Maio
de 1798
«O
último leilão a ter lugar na leiloeira Fairbourne’s foi um acontecimento
triste, e não somente porque o proprietário caíra, recentemente, indo ao
encontro da morte enquanto passeava junto a um penhasco, no Kent. Do ponto de
vista dos coleccionadores, o leilão era composto por obras de muito pouca
importância e dificilmente dignas da reputação de selectividade que Maurice
Fairbourne havia construído para o seu negócio. De qualquer forma, a sociedade
compareceu, alguns por simpatia e respeito, outros para se distraírem da
implacável preocupação com a esperada invasão francesa, para a qual todo o país
se andava a preparar. Alguns chegaram como corvos, atraídos pela carcaça do que
fora outrora um grande negócio, esperando bicar alguns pedaços do cadáver,
agora que Maurice já não o guardava. Estes últimos podiam ser vistos a
perscrutar, muito de perto, as pinturas e as gravuras, à procura da preciosidade
que escapara aos olhos menos experientes dos funcionários. Se uma das obras de
arte fosse incorrectamente descrita em detrimento do vendedor, este poderia
adquirir uma pechincha. Nesse caso, a vitória seria ainda mais doce porque tais
descuidos eram normalmente inversos, com uma consistência incrível. Darius
Alfreton, conde de Southwaite, também observava de perto. Apesar de ser um coleccionador,
não esperava arrebatar um Caravaggio que tivesse sido incorrectamente
classificado, no catálogo, como um Honthorst. Em vez disso, examinava as obras
e as respectivas descrições, para ver até que ponto a reputação da Fairbourne’s
podia ser afectada, negativamente, pela incompetência dos seus trabalhadores. Também
perscrutou a multidão que ali se reunira, ao mesmo tempo que assistia à
preparação da tribuna. A pequena plataforma elevada, que suportava um pódio
alto e estreito, lembrava sempre a Darius o púlpito de um pregador. Casas de
leilões como a Fairbourne’s realizavam frequentemente uma noite de pré-apresentação,
na qual atraíam os licitantes com uma grandiosa festa, realizando o verdadeiro
leilão um ou dois dias mais tarde. A equipa da Fairbourne’s decidira fazer tudo
de uma só vez, naquele dia, pelo que, daí a pouco, o leiloeiro iria tomar o seu
lugar na tribuna, para vender cada lote, batendo literalmente o seu martelo
quando a licitação parasse. Considerando as ofertas insignificantes e o custo
de uma pré-apresentação grandiosa, Darius concluiu que tinha sido prudente não
realizar a festa. Já o facto de não ter sido informado pelos colaboradores da leiloeira
relativamente a esse plano era menos explicável. Tomara conhecimento do leilão
somente através dos anúncios nos jornais. O núcleo da multidão não se
concentrava junto dos quadros pendurados uns sobre os outros, nas paredes altas
e cinzentas. Os corpos deslocaram-se e o verdadeiro centro da sua atenção tornou-se
visível. Miss Emma Fairbourne, a filha de Maurice, encontrava-se perto da
parede esquerda, cumprimentando os clientes e aceitando as suas condolências. O
negro das suas vestes contrastava fortemente com a sua pele muito clara, e um
chapéu preto simples repousava-lhe, de forma altiva, no cabelo castanho. A sua
característica fisionómica mais notável eram os olhos azuis, que conseguiam
fixar o objecto da sua atenção com uma frontalidade desconcertante. Concentravam-se
tão completamente em cada visitante, que pareciam não existir outras pessoas na
proximidade.
É um
pouco estranho que ela esteja aqui, disse Yates Elliston, o visconde
Ambury. Permanecia de pé, ao lado de Darius, revelando a sua impaciência com o
tempo gasto no local. Encontravam-se ambos vestidos para montar a cavalo e,
naquele momento, já deveriam estar a caminho da costa. Ela é a única Fairbourne
que resta, disse Darius. Provavelmente, espera tranquilizar os clientes com
a sua presença. No entanto, ninguém se vai deixar enganar. O tamanho e a
qualidade deste leilão simbolizam o que acontece quando os olhos e a
personalidade que definem um negócio destes desaparecem. Presumo que já tenham
sido apresentados, uma vez que conhecia bem o pai. Parece-me que ela não terá
um grande futuro pela frente, não concorda? Aparenta já ter vinte e poucos
anos. Não é provável que se case agora, se não o fez quando o pai era vivo e
este negócio prosperava. Sim, já fomos apresentados. O primeiro encontro tivera
lugar há cerca de um ano. Estranhamente, nessa altura já conhecia Maurice Fairbourne
há vários anos. Durante todo esse tempo, nunca havia sido apresentado à filha
deste. O filho de Maurice, Robert, participava ocasionalmente nas suas
conversas, mas tal nunca sucedia com a irmã de Robert.
Ele
e Emma Fairbourne não haviam contactado novamente desde esse primeiro encontro,
até muito recentemente. Darius recordava-a como uma mulher de aparência comum,
um pouco tímida e reservada, uma pequena sombra envolta pela ampla luz emitida
por um pai expansivo e extravagante. Embora... Ambury olhou fixamente na direcção
de Miss Fairbourne, com as pálpebras semicerradas. Não é uma grande beleza, mas
há algo nela... É difícil dizer o que é... Sim, havia algo nela. Darius
surpreendeu-se por Ambury o detectar tão rapidamente. Contudo, Ambury tinha uma
ligação especial com as mulheres, enquanto para Darius estas eram, na maioria
das vezes, necessárias, frequentemente agradáveis, mas, em última análise,
desconcertantes. Reconheço-a, disse Ambury, enquanto se virava para examinar
uma paisagem pendurada na parede, acima das suas cabeças. Vi-a na cidade,
acompanhada pela irmã de Barrowmore, lady Cassandra. Talvez miss Fairbourne
seja solteira por preferir a independência, como a amiga. Com lady Cassandra?
Que interessante. Darius considerou então que Emma Fairbourne talvez fosse muito
mais complexa do que ele assumira anteriormente. Apercebeu-se de como ela
tentava agora evitar fixar o olhar penetrante nele próprio. A não ser que a cumprimentasse
pessoalmente, ela iria fingir que Darius não estava presente. Certamente, não
iria reconhecer que ele tinha tanto interesse nos resultados do leilão como ela».
In
Madeline Hunter, O Plano de miss Fairbourne, Edições ASA, 2015, ISBN 978-989-233-344-1.
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