quarta-feira, 1 de março de 2017

A Graça da Coisa. Martha Medeiros. «Se é morador de uma grande cidade, também deve ter um helicóptero matinal entrando pelos ouvidos, ou uma bateria de escola de samba, ou uma turbina de avião…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Barulhos Urbanos
«Creio que eram seis horas da manhã. Reparei pelas frestas da cortina que o dia estava amanhecendo. O barulho era de tontear, algo de muito grave deveria ter acontecido para um helicóptero ficar parado bem em cima do meu edifício. Pior: ele parecia estar alinhado à minha janela. Aos poucos fui voltando do sono e disse a mim mesma: deve ter acontecido um assalto a banco, estão à procura de fugitivos. Mas o helicóptero, insistente, não voava para longe, parecia resoluto em não se deslocar. Desisti de voltar a dormir, não conseguiria. Levantei, fui até à sala, abri a porta de correr que dá para a sacada e olhei para o céu. Nada. Então, olhei para baixo e ali estava o helicóptero, estacionado num terreno descampado, ali diante dos meus olhos o helicóptero que não era helicóptero, e sim um equipamento de construção civil ligado na velocidade máxima, um trambolho que fazia um barulho idêntico ao de um helicóptero, e que continuaria a me servir de despertador nas manhãs seguintes.
Se é morador de uma grande cidade, também deve ter um helicóptero matinal entrando pelos ouvidos, ou uma bateria de escola de samba, ou uma turbina de avião, ou qualquer coisa excessivamente barulhenta que seja oriunda do que se chama obra. Metrópoles estão em constante construção. Aqui onde moro há essa obra bem em frente ao meu prédio, e outra bem ao lado, e duas logo atrás. Silêncio? Estamos em falta. Não há como reclamar para o bispo. Obras são efeitos colaterais do progresso. E o barulho faz parte do pacote, não se ergue um edifício aos sussurros. Então, como tenho escritório em casa, trabalho o dia inteiro com essa trilha sonora pouco romântica. Desde a manhã até o final da tarde, escrevo, escrevo, escrevo, e não ouço o toque dos meus dedos sobre o teclado, ele é abafado pelos motores de equipamentos pesados, caminhões despejando cimento, batidas de estacas, uma orquestra em permanente ensaio, e só resta adaptar-me, um dia o edifício onde moro também foi um esqueleto que não foi posto em pé quietinho.
Sou uma escritora de apartamento, digo com o mesmo tom pejorativo que classificamos crianças de apartamento. Deveríamos estar cercados por jardins, margens de rio, praias abertas, mas vivemos confinados entre quatro paredes que de certa forma aleijam a inspiração. Escrever, lógico, me oferece várias oportunidades de fuga. Estou onde estou, fisicamente, mas também não estou: invento meu próprio lago, pátio, horizonte. Até que volto a ser atingida pela consciência do inevitável: não é o barulho do mar que escuto, nem o das folhas caindo nesse final de Outono, e sim o de betoneiras, perfuratrizes, compactadores, rolos compressores. De poético, me restou apenas a chuva. Quando chove, a obra pára. Quando chove, o helicóptero some. Quando chove, o silêncio me pisca o olho: sproveita a trégua e me escuta». In 11 de Maio de 2011

Dupla Falta
«O belo texto do mineiro Rubem Alves sobre as diferenças entre o ténis e o frescobol (usadas como metáforas para o casamento) é tão conhecido que não seria absurdo supor que foi nele que a americana Lionel Shriver se inspirou para escrever Dupla falta. Se não foi, é um caso de feliz coincidência, ainda que de feliz sua obra não tenha nada. A história do livro é razoavelmente simples: o encontro amoroso de uma tenista obstinada em subir posições no ranking com um tenista de talento mediano que vê o ténis apenas como um hobby. Ambos se apaixonam, casam e a partir daí o leitor se torna espectador de um texto que funciona como um jogo de final de campeonato, com cenas de alta tensão e competitividade extrema. E, como todos sabem, tensão e competitividade combinam com amor tanto quanto cacos de vidro combinam com bebés. Vibrar com o acerto do outro e pedir desculpas quando se erra: eis uma relação frescobol, em que o que interessa é manter a bola em jogo, com ambos se sentindo vencedores pelo simples facto de manterem o entendimento e a sincronia até o término da partida.
Não é o que se vê no livro. Willy foi uma menina que aos cinco anos decidiu que seria a melhor tenista do planeta, e não fez outra coisa na vida a não ser lutar pelo seu lugar no pódio. Eric, por sua vez, cresceu fazendo de tudo um pouco, e quando resolveu se aventurar no ténis, acabou naturalmente conquistando posições que a esposa sempre almejou. Logo ele, que nunca quis nada com as raquetes. Quem esse diletante pensa que é para realizar um sonho que nunca foi dele, e sim dela? O livro escancara traumas de infância, obsessões delirantes e a deterioração que o fracasso pode provocar em alguém que se leva a sério demais. Willy não tem um marido, e sim um adversário. E um adversário muito superior, não por ser melhor tenista que ela, não é, mas por dominar as regras do jogo da vida, que Willy nunca aprendeu.
A autora Lionel Shriver, que já tinha deixado o mundo literário de queixo caído com o seu implacável: precisamos falar sobre o Kevin, mais uma vez desnuda a perversidade escondida onde menos se espera: dentro das relações mais íntimas e nobres. Os diálogos do livro são volteios ferozes, brutais. De certa forma, traduzem a sociedade actual, que exalta o sucesso como a única alternativa de existência, deixando todas as demais no limbo. Na impossibilidade de lutarmos contra nossas fraquezas, resta-nos a baixeza maior: se alegrar com a derrota alheia. In 24 de Julho de 2011
In Martha Medeiros, A Graça da Coisa, Editores L&PM, 2013, ISBN 978-852-542-957-5.

Cortesia de Editores L&PM/JDACT