domingo, 26 de março de 2017

Paródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas de Camões. Quatro Estudantes de Évora. 1589. Décio Carneiro. «Vós só tendes o ramo florescente da árvore de Cibele mais amada, que nenhuma nascida em Benavente ou pelo rio abaixo até Almada»

Cortesia de wikipedia e jdact

Festas bacanais. Argumento
«(…) Fazem concílio os bêbados de porte,
opõe-se aos Bagulhentos Pedro ingente;

favorece-os o Catigela forte,

no Lamarosa tem seu lava-dente.

De inveja Lieo lhes busca a morte,

descendo a Monte-mor contra esta gente,

que vê em rio Mourinho a acção traidora,

e a Peramanca chega venceora.



I

Borrachas, borrachões assinalados,

que de Alcochete junto a Vila Franca,

por mares nunca dantes navegados

passaram inda além de Peramanca:

em pagodes, e ceias esforçados,

mais do que se permite a gente branca,

em Évora cidade se alojaram,

onde pipas e quartos despejaram:



II

também as bebedices mui famosas

daqueles que andaram esgotando

o império de Baco, e as saborosas

águas do bom Louredo devastando;

e os que por bebedices valerosas

se vão das leis do reino libertando;

cantando espalharei por toda a parte,

se a tanto me ajudar Baco, e não Marte.



III

Cessem do Novelão, do gran Barbança

as grandes bebedices que fizeram;

cale-se do Rangel e do Carrança

a multidão dos vinhos que beberam,

que eu canto d'outra gente e doutra lança,

a quem frascos de vinho obedeceram:

cesse tudo o que a musa antiga canta,

que outro beber mais alto se alevanta.



IV

E vós, bacanais ninfas, pois criado

em mim tendes a sede tão ardente,

se sempre em largo copo espraiado

festejei vosso vinho alegremente,

dai-me agora um bom papo despejado

para beber à perda co'esta gente,

porque de vossas águas Baco ordene

um rio para bêbados perene.



V

Dai-me uma vasilha mui cheirosa,

seja de bom licor, não saiba a arruda,

de Peramanca seja que é gostosa,

o peito esforça, a cor ao gesto muda;

dai-me igual nome às taças da famosa

gente vossa que Baco tanto ajuda;

que se espalhe, e se cante no universo,

se tanta bebedice cabe em verso.



VI

E vós, Fernan Gonçalves, segurança

das festas de Lieo em esta idade,

podeis atravessar com confiança

quantas adegas há nesta cidade:

vós, mano, nosso amor, nossa esperança,

a quem só prometemos lealdade,

pois Baco a nós vos deu por cousa grande,

seja a medida assim de quem a mande.



VII


da árvore de Cibele mais amada,

que nenhuma nascida em Benavente

ou pelo rio abaixo até Almada.

Vede-o nas toalhas, que presente

vos mostra a bebedice já passada,

nas quais vivas lembranças vos deixou

o que de vinho mais se carregou.



VIII

Vós, alto taverneiro, cujo império

o bêbado em se erguendo vê primeiro,

ou beba neste nosso hemisfério,

ou beba lá nesse outro derradeiro:

e nem por isso sente vitupério

o fidalgo, o estudante, o cavaleiro,

antes o Turco, o Mouro, e o Gentio

lhes pesa não beber do vosso rio:



IX

inclinai por um pouco a majestade,

que no azamboado rosto vos contemplo,

quando fordes c'os mais desta cidade

ofertar-vos a Baco no seu templo:

os olhos da real bebecidade

ponde no borrachão, vereis exemplo

de amor de vossos vinhos saborosos

por bêbados louvados espantosos.



X

Então vereis se sois bem conhecido

de todos os amigos de Falerno;

que não é pouco ser obedecido

no estio, primavera, outono, inverno:

ouvi, vereis o nome engrandecido

daqueles de quem sois senhor superno;

e julgareis qual é mais excelente

se ser do mundo rei, se de tal gente».

[…]



In Décio Carneiro, Paródia ao Primeiro Canto dos Lusíadas de Camões, Quatro Estudantes de Évora, 1589, 1880, autoria anónima, Projecto Livro Livre, livro 660, 2015, Poeteiro Editor Digital, Iba Mendes.

Cortesia de IbaMendes/JDACT