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«(…)
Assim falara o meu pai e, por trás da dialéctica
daquele sábio, não podia impedir-me de reconhecer o padre Cohen. Dois anos antes,
eu descobrira que ele fora um essénio, até que decidira sair das grutas,
aquando da fundação do Estado de Israel, para ir viver na cidade, e compreendi
por que motivo aquele homem, de uma força e de uma estatura imponentes,
conferidas pelo saber, pela coragem e pela fidelidade, tinha o carisma e o
porte de um patriarca, com os seus cabelos castanhos, o seu corpo magro mas
musculado, os seus olhos negros como dois archotes, num rosto iluminado por um
sorriso quase mágico, que exprimia, simultaneamente, a vida do espírito que o
inspirava e a serenidade conferida pelo estudo dos textos antigos. Era, sem
dúvida, por isso, que meu pai não tinha idade, ou antes, aparentava todas as
idades, personificando a memória dos tempos.
És novo, podes combater, insistiu ele. Possuis os
conhecimentos e a força necessários para deslindar este enigma. A menos que
queiras fazer como o profeta Jonas e fugir à tua missão... São assuntos deles,
respondi. Enganas-te. Não são deles, mas, sim, um assunto que te diz respeito.
Aquele homem foi sacrificado aqui perto, vestido com os vossos trajos rituais.
E, se não agires, fica a saber que a investigação se encaminhará na vossa
direcção. Acabará por descobrir-se a vossa existência secreta, e chegar-se-á,
talvez mesmo, ao ponto de vos acusarem do crime, para vos obrigarem a sair das
grutas, e prender-vos-ão, desta vez para sempre. Por isso mesmo, não se trata
de um combate, mas da vossa salvação! Está escrito que devemos afastar-nos dos
caminhos do mal. Foi então que meu pai se aproximou do rolo que eu começara a
copiar. Decifrador de textos antigos, interessava-se pelas formas individuais
das letras, para determinar em que época os textos haviam sido escritos e,
apesar de a paleografia não ser propriamente uma ciência exacta, uma vez que
nenhum manuscrito pode servir de referência absoluta, conseguia distinguir, nos
textos que lia, a evolução das formas das consoantes mais recentes em
comparação com as mais tardias. Memorizava tudo o que decifrava, reparava
atentamente nas características de cada fragmento que estudava, mas também na
qualidade do couro, na sua preparação e, até, no estilo do escriba, na tinta,
no vocabulário e nos assuntos redigidos. As
suas competências linguísticas permitiam-lhe ler, com igual
desenvoltura, o grego e o semítico, analisar as tábuas cuneiformes bem como os
bicos das flechas cananéias, com que se gravavam textos em documentos fenícios,
púnicos, hebraicos, edomitas, aramaicos, nabateus, palmirenos, tamadeus,
safaíticos, samaritanos ou cristo-palestinianos.
Com o dedo,
indicou uma passagem: a mão do Senhor pousou-se em mim; fez-me sair pelo
Espírito Santo e depositou-me no meio do vale; estava cheio de ossadas. Está escrito, desde o século II, que isto aconteceria no fim dos
tempos, comentou. Acompanhei meu pai até à saída da gruta. À nossa frente, um
grupo de homens aguardava. Anoitecera e, à luz do luar, podia avistar-se o
maciço rochoso escarpado que nos separa do resto do mundo. Ao longe, no
horizonte sombrio, recortavam-se os rochedos calcários, que formam a paisagem lunar do mar Morto. Num banco formado
por rochas, à saída das nossas grutas, reconheci os membros do Conselho
Supremo: Issakar, Pérèc e Yok, os padres Cohamin, Ashbel, Ehi e MoouPim, os
Levis, bem como Guéra, Naamâne e Ard, filho de Israel, acompanhados de Levi, o
padre que havia sido o meu instrutor, um homem de idade avançada, cabelos
sedosos e grisalhos, pele encarquilhada e tisnada pelo sol, lábios finos e
porte altivo. Aproximando-se de meu pai, disse: não te esqueças, David Cohen,
de que estás dentro do segredo. Meu pai aquiesceu, em silêncio, e, pelas
fissuras das rochas, iniciou a árdua descida que leva ao mundo conhecido. No
dia seguinte, ao amanhecer, despi as minhas vestes rituais e enverguei os meus
antigos fatos de hassídio em que não tocava há dois anos: uma camisa branca e
calças pretas. Só depois parti.
Avancei pelo deserto solitário, sob um calor
opressivo, com o rosto em brasa e os
olhos encandeados pela luminosidade, seguindo, por entre as fissuras das
rochas e pelas ravinas, o caminho secreto e perigoso que apenas os essénios
conhecem. À minha frente, brilhava o grande lago de sal que se estende a
quatrocentos metros abaixo do nível do mar, e onde o calor é tanto que a água
se evapora, tornando o mar Morto
ainda mais amargo. Chamam-lhe assim em virtude de as suas águas, pouco
propícias a qualquer forma de vida, não consentirem peixes, algas ou
embarcações e onde raramente se avistam homens». In
Eliette Abécassis, O Tesouro do Templo, 2001, tradução de Catarina Lima,
Círculo de Leitores, ISBN 972-423-086-4, Editora Livros do Brasil, Colecção
Suores Frios, 2003, ISBN 978-972-382-671-5.
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