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«(…) E agora que o avião se fazia à pista em
Lixboa espantou-se com os edifícios da Encarnação, os baldios em que se ossificavam
pianos despedaçados e carcaças rupestres de automóvel, e os cemitérios e quartéis
cujo nome ignorava como se arribasse a uma cidade estrangeira a que faltavam,
para a reconhecer como sua, os notários e as ambulâncias de dezoito anos antes.
Tinha demorado uma semana com a mulata e o miúdo na sala de embarque do aeroporto
de Loanda, estendidos no chão, enrolados em mantas. roídos de fome e de vontade
de urinar, numa confusão de malas, sacos, crianças, soluços e odores, na esperança
de vaga para fugir de Angola e das metralhadoras que todos os dias cantavam nas
ruas brandidas por negros de camuflado, bêbedos de cálices de after-shave
e autoridade. Um chanceler que consultava papéis e pulava sobre os corpos
deitados pingava um nome de hora a hora, e por detrás dos vidros milícias da Unita
de pulseiras de crina e lanças emplumadas, orientados por conselheiros americanos
e chineses, vigiavam-nos sob os tubos de flúor do tecto. Em vez do labiríntico mercado da manhã da partida,
a seguir aos palácios das condessas maníacas e aos bares de sombras lúgubres dos
estrangeiros anémicos, em vez da praia do Tejo onde erguiam o mosteiro e dos pedreiros
talhando o calcário a grandes golpes de maço, em vez dos bois e das mulas das carroças
de carga e dos arquitectos a gritarem para os ajudantes endechas parecidas com a
fala dos criados dos restaurantes galegos, em vez das vendedeiras de ovos e frangos
e pargos doirados e miniaturas de chaminés do Algarbe e quinquilharias de
latão, em vez da claridade de lágrima das cebolas nos tabuleiros de madeira,
dos ardentes poderes ocultos das ciganas que exaltavam as virgens outonais com promessas
de amores de vice-reis, em vez das furgonetas de pára-brisas azuis dos turistas
e das caravelas e dos cargueiros turcos sob a ponte, enxotaram-me para um miserável
edifício de cimento com painéis de voos nacionais e internacionais a pulsarem
ampolas coloridas ao lado do free shop dos uísques. Uma máquina de vender
chocolates e cigarros estremecia de febre a um canto, vomitando caramelos após uma
complicada digestão de moedas, e os passageiros do avião alinhavam-se em fila
como nas mercearias, nas padarias e nos talhos pilhados de Loanda, em busca do arroz,
do pão e da carne que não havia mais, somente poeira e côdeas e gordura e um empregado
que a vassoura não levara a abanar a cabeça ao balcão apontando com o dedo as vitrines
vazias. E lembrou-se dos entardeceres espavoridos dos últimos tempos de Angola,
dos moleques que assaltavam os escritórios e os apartamentos do centro, das
fachadas rombas de balas e das beneméritas do Bairro Marçal sem clientes,
oferecendo a ninguém as coxas de sereias órfãs nas vielas onde os faróis dos jipes
se aparentavam às lanternas traseiras dos comboios. Os que regressavam consigo, clérigos, astrólogos
genoveses, comerciantes judeus, aias, contrabandistas de escravos, brancos pobres
do Bairro Prenda, do Bairro da Cuca, abraçados a volumes de serapilheira, a
malas atadas com cordéis, a cestos de verga, a brinquedos quebrados, formavam
uma serpente de lamentos e miséria aeroporto adiante, empurrando a bagagem com os
pés (na faixa reservada aos passageiros em trânsito passavam islandeses altos e
desgrenhados como pássaros de rio) na direcção de uma secretária a que se sentava,
em um escabelo, um escrivão da puridade que lhe perguntou o nome (Pedro Álvares
quê?), o conferiu numa lista dactilografada cheia de emendas e de cruzes a lápis,
tirou os óculos de ver ao perto para o examinar melhor, inclinado de banda no poleiro
de fórmica, passeou o polegar errático no bigode e inquiriu de repente Tendes
família em Portugal?, e eu disse Senhor não, muito depressa, sem pensar, porque
a minha velha se finou de icterícia há seis anos e dos tios que aqui
permaneceram quase não me recordo ou não me recordo nunca, ignoro se ficaram em
Coruche e se ficaram onde moram, com quem moram, quantos filhos têm, se estão vivos
sequer. Guardo o perfil vago de um primo a chegar de licença fardado de
recruta, pisando as alfaces da horta com as botas cruéis, mas por exemplo a
casa, que é que quer, sumiu-se-me, salvo o espelho do vestíbulo comprado na feira
de Almeirim entre choro de leitões e tambores de saltimbancos, que deformava os
rostos e torcia os gestos em ondulações embaciadas, devolvendo a cada um a sua face
secreta e genuína, aquela que apenas a solidão do sono ou o abandono do amor finalmente
revelam». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988,Publicações dom Quixote,
Leya, 2006, ISBN 978-972-205-995-4.
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