sábado, 25 de março de 2017

Palavras Cínicas. Albino Forjaz Sampaio. «O Desejo é o Waterloo de homens e mulheres. A mulher que nunca se entregou cisma em entregar-se. A que se entregou cisma em entregar-se novamente»

Cortesia de wikipedia e jdact

Carta III
«(…) A mulher leva ao degredo, ao crime, à morte, à desonra. Há homens que se matam por elas, que se arruínam, que enlouquecem. Dalila atraiçoou Sansão, Margarida perdeu o velho Fausto. Foi ela que inventou o ciúme para nos roer, os braços para nos prender, o dinheiro para se vender. Escuta! Se queres ser amado por tua mulher dá-lhe com um chicote. As mulheres precisam de ser espancadas para amarem alguém. Há nisto um fundo de verdade. A pancada é sempre mais sincera do que o beijo. Mas para que amar? Para que bater? Todo o amor acabará na morte. O amor é dos romances. Lá é que viveram Romeu e Julieta, o apaixonado Rafael, Paulo e Virgínia. Trasladar o romance para a vida é uma loucura inconcebível. Enquanto o pobre don Quixote quebrava lanças e corria mundo pela sua Dulcinéia, esta aquecia a cama todas as noites a algum cavaleiro menos andante e mais positivo. Uma mulher ama por egoísmo, e só gostará de enquanto tu fores para ela o máximo ponto onde ela pode pousar os olhos.
Se acaso a minha amante, essa criatura que tem para cada minha pancada uma carícia, encontrasse outro que fosse maior do que eu na sua retina psicológica, eu seria preterido sem dó nem piedade. Todas as mulheres são sensuais e perversas. Toda a mulher se esquece. Se tu desses a vida por uma mulher ela segredaria às amigas que tu nunca passaste de um tolo que morreu por ela. E o teu nome andaria em triunfo nos seus lábios, como o couro cabeludo de um inimigo na mão de um pele vermelha. Dias depois tu serias esquecido e já outros braços teriam imprimido no seu corpo o vergão dos abraços. Quer ela fosse actriz ou freira, ladra ou imperatriz. Uma mulher é capaz de tudo. Não esqueças nunca. Algumas vezes, o grande manto do heroísmo não serve senão para esconder uma meia dúzia de amantes, conforme d’ Annunzio.
A mulher é um misto confuso, um amálgama singular de lama e de desejos, de sujidades e incensos, polvilhado de ouro. O que és tu em amor? Um Falstaff pandilha. Tua mulher o que é? Uma honrada Messalina. Antes de tu a conheceres e a arrendares de corpo e alma, tinha ela olhado aquele militar que além passa presumido; este estudantinho loiro; aquele caixeirola imberbe; os dentes brancos deste, a cabeleira daquele, os pardessus e as botas daqueloutro. A sua alma fora uma hospedaria. Todos lhe convinham. Foste tu afinal o que ficaste. Nunca pensaste em que tua mulher cismasse em quem seria que a desflora… se não fosses tu? Quem seria? Que abraços o outro lhe não daria? Com que beijos loucos ele contaria as rugas do seu corpo? Todas as casadas ou são Terezas Raquim ou se chamam Bovarys. Todas elas traem o marido com o seu Rodolfo e o seu Leon como na Bovary, de Flaubert. Estes ainda por seu turno as atraiçoam e são atraiçoados. Pergunta a tua mulher se alguma vez que ela precisou de recorrer ao amante não teve, ainda como na Bovary, somente um riso ou uma recusa como resposta?
O Desejo é o Waterloo de homens e mulheres. A mulher que nunca se entregou cisma em entregar-se. A que se entregou cisma em entregar-se novamente. Toda a carne tem cegueiras de desejos a que ninguém pode resistir. É o Desejo que fustiga com suas unhas deliciosas a alma dos eremitas e faz pela calada dos claustros mortos, na paz silenciosa das celas sonolentas, ciliciarem-se mutuamente com seus corpos em brasa as irmãs da caridade. O Desejo é tudo. Irmão do Ouro tem com ele a sua genealogia do crime. O que quero eu da minha amante? O seu corpo nervoso que se estorce e se agita ante os meus braços e onde há tempestades de delírios, catadupas de beijos, explosões de luxúrias com arrancos de crucificada. Se ele, esse corpo que eu adoro e beijo, apodrecesse de repente, florisse todo numa chaga aberta eu desprezá-la-ia. E seria para como o corpo dessas cortesãs da plebe, noivas de toda a gente, que todos possuíram ou podem possuir e no qual eu teria asco de tocar. Assim como na vida não há senão interesses, no amor não há senão desejos». In Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira, Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.

Cortesia de EGPaz/Wikipedia/JDACT