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Carta III
«(…) A mulher leva ao degredo, ao crime, à morte, à
desonra. Há homens que se matam por elas, que se arruínam, que enlouquecem.
Dalila atraiçoou Sansão, Margarida perdeu o velho Fausto. Foi ela que inventou
o ciúme para nos roer, os braços para nos prender, o dinheiro para se vender. Escuta!
Se queres ser amado por tua mulher dá-lhe com um chicote. As mulheres precisam
de ser espancadas para amarem alguém. Há nisto um fundo de verdade. A pancada é
sempre mais sincera do que o beijo. Mas para que amar? Para
que bater? Todo o amor acabará na morte. O amor é dos romances. Lá é que
viveram Romeu e Julieta, o apaixonado Rafael, Paulo e Virgínia. Trasladar o
romance para a vida é uma loucura inconcebível. Enquanto o pobre don Quixote
quebrava lanças e corria mundo pela sua Dulcinéia, esta aquecia a cama todas as
noites a algum cavaleiro menos andante e mais positivo. Uma mulher ama por
egoísmo, e só gostará de enquanto tu fores para ela o máximo ponto onde ela
pode pousar os olhos.
Se
acaso a minha amante, essa criatura que tem para cada minha pancada uma
carícia, encontrasse outro que fosse maior do que eu na sua retina psicológica,
eu seria preterido sem dó nem piedade. Todas as mulheres são sensuais e
perversas. Toda a mulher se esquece. Se tu desses a vida por uma mulher ela
segredaria às amigas que tu nunca passaste de um tolo que morreu por ela. E o
teu nome andaria em triunfo nos seus lábios, como o couro cabeludo de um
inimigo na mão de um pele vermelha. Dias depois tu serias esquecido e já outros
braços teriam imprimido no seu corpo o vergão dos abraços. Quer ela fosse actriz
ou freira, ladra ou imperatriz. Uma
mulher é capaz de tudo. Não esqueças nunca. Algumas vezes, o grande manto do
heroísmo não serve senão para esconder uma meia dúzia de amantes, conforme d’ Annunzio.
A
mulher é um misto confuso, um amálgama singular de lama e de desejos, de
sujidades e incensos, polvilhado de ouro. O que és tu em amor? Um Falstaff
pandilha. Tua mulher o que é? Uma honrada Messalina. Antes de tu a conheceres e
a arrendares de corpo e alma, tinha ela olhado aquele militar que além passa presumido;
este estudantinho loiro; aquele caixeirola imberbe; os dentes brancos deste, a
cabeleira daquele, os pardessus
e as botas daqueloutro. A sua alma fora uma hospedaria. Todos lhe
convinham. Foste tu afinal o que ficaste. Nunca pensaste em que tua mulher
cismasse em quem seria que a desflora… se não fosses tu? Quem seria? Que
abraços o outro lhe não daria? Com que beijos loucos ele contaria as rugas do
seu corpo? Todas as casadas ou são Terezas Raquim ou se chamam Bovarys. Todas
elas traem o marido com o seu Rodolfo e o seu Leon como na Bovary, de Flaubert. Estes ainda
por seu turno as atraiçoam e são atraiçoados. Pergunta a tua mulher se alguma
vez que ela precisou de recorrer ao amante não teve, ainda como na Bovary, somente um riso ou uma
recusa como resposta?
O
Desejo é o Waterloo de homens e mulheres. A mulher que nunca se entregou cisma
em entregar-se. A que se entregou cisma em entregar-se novamente. Toda a carne
tem cegueiras de desejos a que ninguém pode resistir. É o Desejo que fustiga
com suas unhas deliciosas a alma dos eremitas e faz pela calada dos claustros
mortos, na paz silenciosa das celas sonolentas, ciliciarem-se mutuamente com
seus corpos em brasa as irmãs da caridade. O Desejo é tudo. Irmão do Ouro tem
com ele a sua genealogia do crime. O que quero eu da minha amante? O seu corpo
nervoso que se estorce e se agita ante os meus braços e onde há tempestades de
delírios, catadupas de beijos, explosões de luxúrias com arrancos de
crucificada. Se ele, esse corpo que eu adoro e beijo, apodrecesse de repente,
florisse todo numa chaga aberta eu desprezá-la-ia. E seria para como o corpo
dessas cortesãs da plebe, noivas de toda a gente, que todos possuíram ou podem
possuir e no qual eu teria asco de tocar. Assim como na vida não há senão
interesses, no amor não há senão desejos». In
Albino Forjaz Sampaio, Palavras Cínicas, 1905, prefácio de Fred Teixeira,
Wikipédia, 2011, Editora Guerra e Paz, ISBN 978-989-702-000-1.
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